sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Buraco Negro

A grande Catedral fora terminada há mil anos. Resistia ainda, conspurcada no exterior por um emaranhado de luzeiros e fitas coloridas e pelos enormes paineis que anunciavam a comida fácil (de fazer, comer e vomitar). No seu interior, no lugar dos antigos fiéis acotovelava-se o povo ao longo das bancas do mercado assente num exército de ratazanas e couves podres.

O altar (com o seu anjo há muito vendado) ainda lá estava, e num dia de sorte era possível vencer as filas que se empurravam pela nave e alcançá-lo para obter o acesso aos juízes e aos negócios menores do estado que dividiam a antiga zona do coro. Tudo o resto eram ministérios envoltos em vidralhada negra e de mais escuros propósitos.

As novas chegaram já tarde na noite e o pior acontecera; o Usurpador, que dividira a meio a colónia anos antes, estava de regresso. Quebrara-se assim o último fio de razão. 

Foi como se mil rastilhos de pólvora se acendessem. Todos correram para as ruas e praças e a Catedral, pela primeira vez em décadas (desde a última Grande Desinfestação) ficou vazia. O silêncio sepulcral espreitou receoso por entre as colunas e, majestosamente, reclamou aos poucos o espaço antigo: vinha para ficar.

Sabia-se, pelos olhares selváticos contidos a custo nos anos que antecederam a entronização, que as suas celebrações trariam muita morte. Era de facto um apocalipse anunciado, tal como se contava nos antigos escritos.

Pela madrugada os gritos tornaram-se esparsos e cada vez mais inumanos; homens, mulheres e crianças tombavam, simplesmente; qualquer espaço era bom para esmagar um crânio ou decepar um pé. A morte vinha implacável, independente das causas; a morte era verdade - essa palavra estranha que deixara de ser ensinada nas escolas. 

Os cães correram para Norte velozes pelas estradas e todos os bichos os seguiram; contava-se à boca fechada que ainda existiam florestas e era chegada a hora de as descobrir.

Pelas três da tarde os céus cobriram-se de chumbo; racharam-se as paredes e delas saíram cobras que se julgavam extintas. Os chãos abriram-se e todos os corpos foram sugados de forma lenta e impiedosa, deixando atrás de si um rasto de unhas cravadas no alcatrão. Depois foi cair num negro sem fim, sem vento, sem som. 

Para alguns, sem que o tempo ou movimento pudessem ser medidos, sobreveio a certeza de si mesmos; foi uma humidade, uma espécie de abraço que lhes devolveu braços e pernas, e juntos rastejaram na direcção possível: estariam vivos, afinal?


Primeiro foi um cheiro inebriante de terra; depois uma luz ténue e um súbito raio de sol que iluminou todo o poço, as paredes cobertas de larvas humanas, de olhos fora das órbitas. 

Não reconheceram os seus corpos, antes débeis e que, agora, num arfar de músculos bem treinados os alçavam para o espaço aberto. Reconheceram sim aquele tempo distante, em que jamais haviam vivido.

 Um espaço imenso e vazio que reflectia o céu azul e, lá longe, a Catedral em construção.

domingo, 10 de setembro de 2023

Órbita

Dormira no chão de pedra da velha igreja. No alto, a noite estrelada enchia o espaço aberto séculos atrás por um incêndio.

Durante o sono as roupas haviam-se coberto de musgo, e ervas altas cresciam agora em seu redor; ao lado, as botas suportavam estoicamente um abraço de heras. 

Do seu sopro nascera um riacho. Levantou-se e seguiu-o, sacudindo dos ombros o resto daqueles anos numa nuvem de cinzas drapeadas. Procurou o lugar mais vasto das planícies, onde pudesse soltar desenfreadamente a vista na distância, naquele azul egípcio e transparente que se abria agora no horizonte.

Ali estava bem. No seu êxtase temeu adormecer de novo. 

Num movimento de compasso ergueu lentamente o arco enquanto a outra mão, de uma só vez, colheu sete flechas longas. Iria lançá-las todas de uma vez. Decerto chegariam mais longe do que a vista alcança, voando sobre as estepes, cruzando depois os oceanos, e evitariam habilmente os cumes das montanhas.

Ficou a vê-las partir, cumprindo-se tudo o que previra. Por longos momentos esticou a vista mais do que o havia feito o arco. Finalmente, apenas podia adivinhar. Tinha a certeza de que nada iria travar as sete flechas de aveleira. Onde acabaria o mundo?

Desceu sobre ele um manto cálido de silêncio. 

Não saberia medir o tempo que passou; apenas ouviu um uivo ínfimo e distante atrás de si e logo sete silvos rugiram, gigantes. Teve apenas o tempo de descer os olhos ao chão e de neles guardar uma última memória: um fio de sangue quente tingindo de morto escarlate as sete cabeças de flecha.

*

fotografias: Mikhail Nilov, Lars Mai, Chrys Stam, Nayrod Reyes

sábado, 9 de setembro de 2023

O Arco

 


Com a espada cortou-lhe a cabeça numa elegância de seda.

Observou-a, ainda sobre os ombros, deslizando devagar no declive do seu antigo corpo.
Caiu sem estrondo na terra, mas com um baque curto e sujo de fruta podre; e era-o, de facto.
A cabeça rolou livre e lentamente, cumprindo um pouco menos de um cúbito. Depois deslizou na erva húmida criando momento enquanto se aproximava - agora sem os braços abertos e suplicantes de há pouco - do precipício. Coberta a distância precipitou-se sobre o rio; e pela primeira vez criou algo verdadeiramente belo, na forma daquele arco que desenhou até às águas geladas.

O resto do corpo, joelhos flectidos, girou nas rótulas e tombou sobre a esquerda em direcção à noite.

*

quinta-feira, 24 de junho de 2010

kULTURA




O tempo é pequeno, distraído.

"Pois que passe depressa e acabe, logo que se cumpra a função. Não tenho tempo."

Nex Molior.

"Espelho meu, espelho meu, existe alguém mais, do que eu?
Estou cheio de idéias, mas não quero muitas letras; que sejam poucas - pois que explicações são para quem nada percebe."

É tudo pequeno, e mesmo o que demora não permanece.

"Mas é muito divertido."

*

Tempos fétidos estes, em que nada cheira.
Essências, sal e pedra, há muito que abandonaram estas terras na barca da memória.

sábado, 19 de junho de 2010

O Fim

E eis que me sinto adormecer neste corpo que definha. O que escolher? A mente outrora ágil correndo como um rato - naquele fim de tarde pardo em que todo o meu músculo era supérfluo; ou antes esta dormência, entorpecido, da noite negra e cálida a meio de todos os demónios?
O eterno dilema: definhar na competência ou florescer, viçoso, entre a modorra dos sentidos.
Olho, e tudo se move à minha volta; e no entanto, estando sozinho, sou mais do que aguento ser capaz.
A solidão é tudo o resto.
O silêncio.
O meu maior desejo.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

A Calma



E se no teu mundo se desse um grande estrondo, e tudo no teu ser se estilhaçasse. Restaria apenas aquilo em que fosses íntegro, ou nada. De qualquer forma uma rebentação maior do que as muralhas mais inexpugnáveis. Imagina que te afirmavas nesse instante; como um ser terrível, indomável, doce e meigo, cruel para além das lágrimas, e tudo em ti eram palavras surdas. Mossa e impacto. Mas sabias que nesse mundo habitavas apenas tu, fora de ti próprio.

No meu cérebro esmago-te como folhas secas.

Pudesses visitar-me neste plano e fugirias seco de terror. Sim, já que estás ébrio do som da tua voz vazia, das tuas lágrimas sem sal, do teu sorriso em arco que se abre para o nada. Tu és tudo o resto e dessa forma és coisa nenhuma.
Eu sou apenas único, esta impotência.

E no entanto estou vivo e isto é tão somente uma pústula ridícula no meu rosto. Sabes, a minha pele é grossa como os séculos.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

A Foice



Desenhei um círculo perfeito e cortei sete caules de homem. Depois, retirei-me para a minha ínfima cela; o menor dos cantos negros do meu castelo. "Será isto, o pousio?"
Ardia uma vela e cedo se me acabou o ar. Estendi a mão e peguei na foice - o seu cabo ainda cálido, e
saí para o ar gelado da noite. Ou talvez fosse dia. Como nas trevas o sol não vinga - tanto me faz - é apenas tempo.
Então, desenhei um círculo perfeito e cortei sete caules de homem.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Jugulator


Não me despertas o interesse. Menos ainda recordo quem dizes ter sido, ou quem julgas que serás - se não souberes o que é a fé, acreditar, ou simplesmente a pura vontade incontrolável.
Indica-me a jugular do mundo,
e eu corto-a.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

As Flores



A pele como uma pálpebra.
Acordei. Uma estrumeira. Tudo eram detritos inertes no meu círculo próximo; e assim o eram os restos dos dois lagartos que cegos de morte velavam o meu sono.
Tentei lembrar o verde, mas tal como o azul dos céus também este se fora.
Aspirei o vento, sem nada encontrar dos meus caminhos. E pela primeira vez na vida olhei para trás, numa réstia de desejo de te ver. Estarias no cimo da torre mais alta da catedral; se estivesses. Se os meus olhos tudo isso pudessem alcançar.

De nada me importa a lama, os os rios fumegantes de dejectos, conquanto se dirijam a algum lado.
Tanto nos queixámos e contudo não há como esta paz em que todas as riquezas e misérias não cabem nas palavras.
Mas deixa-me dizer-te que mesmo uma fossa é plena da vida que no ouro nunca vinga.
Morre por isso em paz - eu serei no teu lugar. Mesmo que me arranquem os braços e o coração jamais serei outro qualquer, ou nada.
Sempre eu e tu, ainda que não te veja mais.

As flores nascem em toda a parte, em qualquer sítio. Desde que seja delas o tempo.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

The Fall



Nem o céu azul ou as nuvens altas escondem o regresso do Outono. E neste instante, em que te o digo, cobre-se a terra de um véu de prata; um manto húmido e ansioso, das tuas mãos quentes lambendo as minhas cicatrizes.
O mundo fica maior.
Alongam-se as sombras: de árvore em árvore, dos telhados aos campanários, são uma estrada única que dobra todas as esquinas e atravessa os vales, desde os penhascos da costa da Cornualha até às luas do oriente; por vezes é da espessura de um caule, apenas.

Mas é impossível quebrar o caminho que me levará a ti, neste Inverno.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

As Cobras



As cobras eram três.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O Ovo da Serpente


"Estás a falar comigo?"
Sim.
Meu caralho, sim.
É contigo que falo. Sabes que me tens enrolado no teu pescoço desde que te recordas. Sou o vento frio. Aquele sopro negro na tua nuca - quando te confortas dizendo "são os vidros partidos nas janelas". Os teus gânglios inchados, o nó na tua garganta - não, não é a comoção; essa tenho-a aferrolhada num cofre de chumbo, há já tanto tempo que a esqueço constantemente e a confundo com as aranhas.
A tua mão no peito quando a temperatura cai; não te iludas, já estou cá dentro.
Política, dizes tu? Antes um peido, pois tem menos ar.
São os sinais do tempo. Mas do tempo ido, que não conheceu este terror de lesmas - daquelas a quem nunca racharam a cabeça com um maço - por coisa pouca, quase sempre; como quando dois mais cinco não era Natal.

Espero, por fim, ser a corda - e o chão a falhar-te debaixo dos pés. A ternura derradeira.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Os dentes

Há um caos seguro, onde me encontro todos os dias nos momentos de silêncio.
A ordem envolve-me, obsessiva, um verdadeiro nojo; Está em toda a parte, menos no mar, menos na areia. Um ano são muitas luas, muitas brumas, mas não mais do que um fumo fétido - como aquele que se eleva das piras em que se queimam os livros onde nunca habitaram as ideias.
E o desprezo, a revolta e a modorra. O não ser mais do que o ser que se odeia.
Uma dor de dentes mas que, enfim, é o momento de sangue em que se vertem os miolos. Assim nos pudéssemos ver, todos, livres da mediocridade, da ralé dos dias e dos espaços. Dos que nos consomem. Sim, eu devorar-te-ia, se existisses. Mas és apenas eu.
A fogueira arde, ainda? Pois o que há ainda para arder? Existirá neste mundo uma combustão segura, outra que não a dos detritos e da decomposição dos dias calmos? A calma é o mais traiçoeiro dos ódios, a suspensão, o indizível compasso de espera entre o ser e o que se já não é.
O que é a água suja? Depende, dos estados de alma e da latitude em que te encontras: é a lama em que te arrastas desde os primeiros alvores do dia, na esperança de um lugar seco; é a réstia de humidade nos desertos, o derradeiro oásis entre o sol poente e os teus intestinos quebradiços.
Mas é preciso viajar. Se com metais preciosos, então nas lonjuras. Se com uma côdea de pão seco, então no caos seguro, onde te encontras todos os dias nos momentos de silêncio.
Gotik Raal o disse.

domingo, 30 de agosto de 2009

Vita Cartesii res est simplicissima*



Tenho uma relação simples com a vida.
Desejo-a.
Mas não me faz falta.

(* O título pertence a Valéry / Teste)

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Voragem



Eu sou a lua do meu sol
vogando eternamente
o breu
em torno do meu ser.

Aqui
onde me encontro é sempre noite;
lá onde sou eu
não é o dia,
é tudo a arder.

Eu sou o mar e a caravela
que resiste ao remoinho,
morte certa.
Mas resistindo eternamente,
Eu sou o poço e a espiral,
a porta aberta.

Eu sou menos do que sou
e a fome é grande,
mas sou tudo o que há na sede
e me alimenta.

domingo, 9 de agosto de 2009

Bósforo

Há um tempo para a pedra se vestir de musgo, para os líquenes cobrirem as árvores e as paredes. É um tempo de heras e galhos retorcidos que navegam o mundo inteiro no espaço de um jardim, de uma clareira. Os pássaros partiram, e todos os insectos fizeram um pacto de imobilidade e de silêncio. Um veado macho aparece, por vezes, como a noite e como a lua; mas não estão ali, na verdade: pertencem a um mundo à parte, de sombras, onde o tempo menor ainda é rei; como o teu corpo morto, esquecido entre as ervas altas à beira do caminho.
Será que existes, pois se ninguém te encontra?

É este o tempo dos calendários, em que me perco do regresso à Catedral. É este o tempo suspenso, milhares de anos para além da tua vida inteira, do pó descendo na luz que varre o transepto como a espada enterrada na pedra.
Quem te arranca do sono que habitas?

E então o tempo adormece - e tudo é vivo outra vez. O caminho faz-se estrada a meus pés, inevitável. Distingo a torre da Catedral nas colinas, como Bósforo entre os teus seios.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Regresso


Avistei-o quando alcancei o topo da colina, ao longe. Para lá da zona do casario com os telhados baixos da cor da terra no sopé do monte. E no alto o meu velho castelo em ruínas.
Um toque de leve na espádua do cavalo e assim fomos, de regresso àquele passado.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

A Escória



Todas as bestas do mundo. E os impérios dos sentidos.
De um único golpe, a lei da espada é de todas a mais simples.

De que serve crescer, padecer das dores da alma e sobreviver às horas intermináveis de instrução, à asfixia no supérfluo; saber ocultar todos os odores e diligentemente esconder os fluidos do corpo.
De que serve cuidar de roer o lixo das unhas e poder banhar os longos cabelos negros ao preço de três colheitas por unguento.
É de facto ostentação: o belo sorriso que nunca rangeu a perda de um braço.
Ao inferno, toda esta escória laboriosa.

No campo de batalha, a pé e arrastando o peso do ferro que me cobre, todas os códigos me parecem curtos. Mas não a espada na pura expressão do coração.

Pois de que serve a vida a quem teme a morte.
E então cuspo três dentes de ouro no sangue dos pulmões.

domingo, 24 de maio de 2009

Túmulos. V. Nankyoku Monogatari


Tínhamos pela frente aqueles dois meses de Inverno. Dias intermináveis no frio e implacáveis no vento ou - na ausência deste - no rigor, da cegueira das neves mais do que das noites; ainda que o sol brilhasse sempre, a coberto do horizonte e dos glaciares.
Não há nada mais belo neste mundo do que a solidão nos confins da Terra quando todos os elementos conspiram contra a permanência; mas que ainda assim nos concedem respeito por nos termos escusado a partir. Eu sei que isto parece vago e estranho. Mas não o era para nós, cães, que nascêramos sob as luzes da Aurora Austral. O mundo dos nossos olhos guardava em si mesmo todas as respostas transcendentais.
Mas é precisamente quando a existência se torna no único alimento que todas as perguntas se extinguem. Aqui, nos gelos eternos do sul, o tempo não interessa. Aquilo que diz que passado é passado, presente ou futuro, não tem qualquer importância.
Tenho as patas feridas de sangue. Tenho os caninos feridos de fome. Cobre-me o pelo o eterno branco e o azul; tenho comigo o gelo e os mares que se estendem negros, ao longo das fendas abertas e dos glaciares.
Eu sigo o meu irmão por toda a terra: ele, que se libertou da morte certa antes de todos.
Dêem-me a morte, mas a morte incerta. Seja a fome no gelo flutuante, seja o vento impiedoso ou o abrigo derradeiro na carcaça das baleias. Sol ou noite tanto faz, pois se o prazer ou a dor são agora meras palavras.
Todos os homens partiram; raça maldita, mesmo que sendo o melhor amigo.
E contudo este é o mais belo testemunho da existência. O branco azul do gelo, o negro mar e o vento, os dentes, as garras e os ossos; meus, das focas e das baleias.
Nasci e cresci cativo das minhas forças.
E então, enquanto aguardava a morte e a Primavera, cedi a esta última fraqueza: lembrei-me de nós - tu e eu - quando este mundo ao Sul que hoje me recebe vivia ainda só das cores dos menestréis e das especiarias; nos pergaminhos.
Eis que sou morto, e estou vivo.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

A Fonte



Ser o fosso
e ser a ponte.
Ser o castelo na ilha,
e ser o poço
sendo a fonte.

Ser o ser e o não ser.
Ser mais do que todo o querer,
não querendo mais
do que o tempo de dizer
Eu.
Essa palavra maior,
desde que infinitamente menor
que aquela outra que a acolhe;
Om. O som do sopro de
DEus.


(Em resposta aos comentários de Leto of the Crows e Vitor Mácula)

Pintura de Jan van Eyck

quarta-feira, 20 de maio de 2009

O Medo



O dia foi de sombras e o vento soprou mais denso nas margens do caminho, encoberto pela copa das árvores. Nenhuma armadura me teria trazido o descanso, hoje, e contudo o céu era de um azul sem mácula. Dias assim são de enxofre, venenosos.

Onde estão estes muros que me cercam,
para que os derrube;
ou as grades da cela que te encerra,
para que as arranque.
Pois nada no meu peito cede aos terrores do corpo.

Ser cego,
mas sempre podendo ver.
Ser forte,
e contudo perecer.

Mas sempre o sangue,
correndo célere nas veias.

Com a espada rasguei uma cruz,
no coração.
e atirei-o aos quatro ventos,
por toda a parte.

Ser vivo,
e ainda assim
nunca morrer.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A Ponte do Céu



O meu ser não é daqui,
pois se neste reino tudo os meus olhos alcançam.
E o meu corpo solto esvai-se,
líquido na ânsia do espaço.

Vida ou morte, o meu desejo. Tanto faz
desde que a vastidão da terra me consuma.

Talvez lá, onde há um mundo para além das nuvens,
feito da mesma luz dos dias; do mesmo ar, do pó da terra.
Mas onde o horizonte eterno é maior
do que o calor das fogueiras.

Foi lá que te vi, quando dormia,
antes de por fim reconhecer
o teu rosto, o meu castelo.

domingo, 10 de maio de 2009

As Irmãs

Eram como dois pequenos demónios. Na verdade apenas uma carapaça vazia. Um dragão anão de duas cabeças, as irmãs; de uma semelhança inacreditável, apesar de todo o seu esforço. E contudo as diferenças eram ínfimas, apesar do estrebucho e do ruído enjoativo e ensurdecedor que provocavam, de lava morna, à sua volta.
Deslocavam-se ao nível do ânus do mundo. E assim não perdoavam ao mundo o seu próprio tamanho.
No entanto há algo de verdadeiramente terrível, nesse inverter de dimensões em que os seres crescem de forma transversal e assim se condenam a um rastejar eterno. De uma forma transversal. É que da terra nascem as raízes das árvores, se erguem os pilares das catedrais, e todo o esforço de vida se faz no sentido do céu.
Assim as duas irmãs, como todas as outras cobras ou restos de pele podre de escamas abandonada, tinham aquela visão distorcida dos vidros de aumento, em que tudo se agiganta no centro e perde a nitidez e o sentido nos círculos periféricos. Mas por isso mesmo se esqueciam de que os centros vivem das periferias. Isto o esqueciam apenas no espírito pois que os seus corpos se alimentavam de tudo o que de viçoso crescia à sua volta.

Era um dragão ridículo de duas cabeças, as irmãs, sem entranhas, apenas feito do vazio do frio, do tempo que nunca conheceu as estações. Um frio sem sentido, um vazio sem espaço para crescer. E contudo existiam, proliferando no alcance do seu embuste, as irmãs.

E eu mingava para as fazer crescer, hirto, no nojo de pisar a bosta do seu ser a cada passo.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Hieronymus

O sangue apoderou-se das tuas órbitas. Lentamente ergueste o braço para apontar aquele que escorria dos meus olhos e, na verdade, era desconhecida a temperatura das minhas lágrimas.

Os sinos tocaram sem horas, chocando uns contra os outros; depois, quando o metal se transformou em pedra, o seu toque fez tremer toda a terra.
Os cães, pelo sobre a pele e sobre os ossos, abandonaram as fossas e os covis. Vagueando sem propósito cravaram os seus dentes, um após o outro num tempo de rigor demente e com uma profundidade enraivecida. Os pássaros gritavam nos céus e as gralhas desceram sobre os que na praça olhavam o alto, a todos furando os olhos, como relíquias.
As árvores secaram e os galhos quebraram-se, enegrecidos todos os ossos partidos. Forquilhas e dentes tortos. 
A água inquinou e todo o pão criou bolor, azul da côr do veneno.
Depois vieram as chamas, e incendiaram todas as lembranças e pensamentos do meu crânio e, nas lojas, todos os perfumes arderam.
O espírito do rato era no homem, e neste habitava o vazio. Em tudo havia movimento mas a vida estava, para sempre, ausente.

Tinham-se desatado os nós. Todos os sentidos eram perdidos, e mesmo a idéia de que um dia houvera a ordem nunca, agora, existira.

Depois acordámos, lado a lado, as mãos dadas e olhamo-nos em mudo espanto; mas neste era ainda maior a tristeza do que o silêncio. 
E tínhamos espadas cravadas no coração.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

A Praga de Anémonas

Não há maior Terror do que as criaturas dos homens. Aqueles (seres daninhos) que escolheram viver nas margens de si mesmos; que a cada dia me impedem de alcançar os mares negros e profundos e que depois, como uma praga de anémonas, se erguem entre mim e as margens, que se fizeram para descansar.
O homem é a Praga Máxima. É a transformação dos números místicos na grosseira aritmética das hordes - dos que vomitam o caldo á visão de um campo de batalha. É o maior pecado. Aqueles que escolheram tolher o uso da alma e da inteligência do corpo, na posse de todos os sentidos embutidos, para aniquilar o que de bom ainda pudesse resistir - é por isso mesmo, e hoje, o meu adeus ao mundo dos homens.
Hoje é o dia em que cuspi no mundo, um cuspo de asco absoluto.

Serei doravante apenas um filho do Deus Maior; um de entre aqueles que, no amarfanhar extremo do sangue (e das veias, e do coração) se fingiram mortos no campo de batalha. Mas apenas pelo desejo de sobreviver para morrer antes no combate seguinte.
É uma diferença abismal: ser um guerreiro no terreiro da derrota incontornável, ou um eunuco nos vastos campos da vitória da vergonha.
E ainda assim toda a vergonha é a minha, de um dia ter sido homem.

Este é o mundo do meu corpo vivo, mas nem por isso acreditarei que existe.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Bloody Mary

A mesa era comprida, e de tal modo longa que ao fim das dez taças os meus olhos ficavam-se na metade de cá. Estendiam-se aos lugares das aias, se tanto - e daqueles cujo pescoço já não estava ao alcançe, nem dos caprichos de ódio da Rainha, nem das fúrias sanguinárias de Gotik Raal.
A mesa, sob um escuro e sujo manto de damasco, enegrecido do asco, sulfuroso, empurrava os limites do velho salão; daquelas paredes sujas das fogueiras, das chamas que não se extinguiam desde os tempos do velho Rei - Pai dos Avós do meu próprio Pai - que aportara à ilha faminto, descendo de uma Nau esculpida nas árvores da Floresta de onde, dois anos antes deste dia, se haviam cortado os tampos desta mesa.
As discussões do presente, envenenadas, continuavam intermináveis.
À cabeceira, no outro extremo a trinta jardas, Bloody Mary bocejava. Com o osso e a gordura de um faisão, escrevinhou umas coisas numa velha gravura (representando uma forca e o seu pêndulo) e, com um trejeito ímpar da faca de trinchar - isto me foi contado mais tarde - fez-nos chegar às mãos os seus singelos pensamentos. Assim se lia:

"Ah, este pasmar em dia de jograis. Quão repugnante é este alarido, e o ter de rir com hora certa. Ter de verter lágrimas pelas lágrimas. E fingir o espanto da surpresa, e contudo anunciada com trombetas. E, o que é pior que tudo, o ar solene. Esmago as minhas pernas sobre o peso deste trono e enterro os dentes nas palmas das minhas mãos. Quantas vivem em mim! Quantas conversas não teria no silêncio mais profundo, se tudo se aquietasse. Tragam-me a espada e farei rolar cabeças. Nem que, apenas, pelo alívio de uma e única convulsão genuína."

Leu-o primeiro a Rainha.
Depois, sem o mais leve bater de olhos, depositou a velha gravura no meu prato entre os ossos já roídos.
O sangue correu-me célere nas veias: dos caprichos, do pasmo, dos ódios e do enfado.
Ainda assim, apesar de todos os vapores e sempre vítima do demónio lúcido da minha mente, avaliei as circunstâncias: três Cavaleiros, sete Ministros, quatro senhoras das noites de Deboche, cinco Embaixadores. Os Pajens presos das sombras bruxuleantes das fogueiras, como que esculpidos na pedra das paredes, encarregar-se-iam de que o salão estivesse limpo e arejado às primeiras luzes da alvorada. Os tempos eram de Inverno e todas as novas eram reféns da neve que nas manhãs cobria os caminhos. O meu sono estava assegurado. Tudo era certo.

Com um gesto menos ágil do que mesmo para mim próprio admitiria, desembainhei a espada e lancei-a, silvando sobre a mesa, sobre o sujo manto de damasco. Cortou os ares, cegou todas as conversas, e enterrou-se no outro extremo até à altura dos joelhos.

De um único salto, Bloody Mary tomou-se da espada pelas costas e sobre os seus longos cabelos apodrecidos, e decepou numa volta todos aqueles que tinha à distância de um cálice. Não houve pânico. Apenas o tempo suspenso, entre aqueles e os outros que se seguiram.
Depois fez-se o silêncio, e de novo a paz tomou conta do salão e durou, plena, até ao final da ceia.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Cristo no Deserto

Naquele dia, a manhã não afastou as trevas como era seu costume.
Ao invés, as primeiras luzes trouxeram consigo um véu metálico, de um brilho opaco, que reflectia a têmpera da grossa armadura que envolvia toda a Terra desde as matinas.
Depois foi um trovejar rouco e enraivecido vindo das entranhas do chão, e que anunciava a chegada das águas, do dilúvio.
Da torre mais alta da Catedral, cujas janelas estreitas deixam abarcar os quatro cantos do mundo, por todas elas se anunciava aquele cerco dos mares que, num ápice, devoraram tudo o que era seco.

Coisa de maravilha. As águas negras cobriram as represas e diques, as árvores, os caminhos e os castelos, encheram todos os poços e fossas, e não mais houve cores no céu ou na terra, e não mais houve terra ou céu. Apenas aquele inferno de mercúrio, sem espuma.

A Catedral fez-se Nau e então, lentamente, soltou amarras daqueles verdes prados submersos e partiu, o ventre cheio do sombrio silêncio, as naves enfunadas pelos seus ventos de séculos. Sobre as ondas, a torre rasgava círculos na copa das núvens, e nestes estava toda, a única luz viva que se viu naqueles dias; e por estes desciam todas as águas do céu que libertavam os vapores de enxofre das águas da terra.

Por três montanhas passou sem aportar e cumpriram-se vinte dias.
A caça, hirta e lívida de morte flutuava à deriva, os cascos entrechocando-se como mastros - e tudo o que tinha chifres era morto.
Passou um sino sobre as águas com dois camponeses adormecidos, da sua corda pendendo, enforcado, o monge das horas - e tudo era chumbo.
Por duas colinas passou sem se deter e cumpriram-se trinta dias.

Depois foram quarenta e todo o movimento cessou.
Desceram as águas recolhendo submissas aos ribeiros, aos regadios, gotejando das macieiras, enchendo as ervas de brilhos.
A Catedral adormeceu num imenso campo dourado de searas, devolvendo as sombras às entranhas labirínticas dos seus túneis, e as heras puderam então de novo crescer pelas paredes.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Túmulos. IV.

Partimos para Leste, pelas infindáveis curvas brancas do rio; mas cortar a direito, por uma vez na vida, era impossível. Em vez disso o caminho afundou-se-nos nas veias, pleno de paciências, de silêncios, da certeza dos tamanhos relativos - do mundo e dos nossos.
Por fim o rio esvaiu-se nas planícies agrestes de vegetação rasteira e então virámos a Norte e a Leste. O percurso era feito de todos os trilhos pequenos das aldeias, do tempo em que éramos poucos sobre a terra e, de facto, naquele momento fomos únicos. Foi toda nossa a pena, a dor e os céus das nuvens mais altas do que a vista alcança.
Passaram duas luas, antes que finalmente tomássemos o caminho do Sul e do Leste - mas hoje, ao pertencer a estes muros de pedra que me abraçam, não me lembro de quantos dias tinham; apenas recordo aquele Ser branco no céu, duas noites a fio, das sombras de cinzas suaves e dum recorte perfeito suspenso dos confins, do negro.
E depois foram mais curvas, mais rio, e quatro cumes de morte - apenas conquistados por aqueles que já foram deste mundo, e regressaram para de novo partir. Subir para morrer, e descer para de novo negar a vida.
Vieram os campos, de pós sujos, dos minérios; sítios que a Criação não logrou alcançar - tudo cinzas, ferros magnéticos. E os rios transversais - mas desta vez o caminho era direito, e todas as curvas se esbatiam nos cantos dos olhos.

Por fim alcançámos os pântanos cobertos de um branco de gelo invernal. Mas não menos pântanos.
Naquele mundo esquecido os nossos sons morriam perto; a minha corrida metálica, da armadura descompassada pelas quinhentas léguas a fio, e o arfar dos cães das línguas enormes pendendo já sem saliva, as unhas rasgando as últimas placas de neve e sendo rasgadas por estas. Também eles davam sinais do fim, da inquietação do mundo imenso para lá daquele tempo, que acabaria nessa noite.

Chegaram as trevas. Sentei-me no meio da clareira das árvores nuas, o elmo entre os joelhos. Os cães partiram e regressaram com a lenha húmida nos dentes, e com esta marcaram um círculo à nossa volta. No centro, eu era a torre caída e eles, companheiros de uma vida, formaram as ruínas de uma muralha em meu redor.

E assim permanecemos, sem som, sem olhar, indo-se os sentidos sem regresso. Podia ouvir os lobos da noite, mas os cães inquietavam-se apenas com os silvos dos meus demónios. E por fim acendeu-se um tronco, como um diabo. E logo dois. E todo o círculo de fogo se ergueu na noite.

Naquele instante, dos nossos corpos fez-se a pedra e fez-se o gelo.
E ali permanece, ainda hoje, a escultura oca. Dos dias em que fomos o mundo todo.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Fata Morgana

Naquela manhã todos os bichos dormiram um pouco mais. 
Numa breve existência fóssil aguardavam que o calor do dia, de um sol morno e sereno como um lago, afastasse a fina camada de geada que a noite lhes emprestara, como um manto. Todos os sons eram ainda em silêncio e os sinos e os monges do mosteiro haviam falhado as Laudes.
No horizonte a perder de vista alongava-se a miragem do teu castelo, escura e densa; tomada de uma vibração imperceptível anunciava o teu regresso.
Do alto das minhas muralhas, envolto nas peles da última caçada e as pálpebras tão quietas como as pedras da torre, avistei-te, por fim, a duas léguas.
Trazias a tua floresta, um círculo mágico de raizes altas e ramagens em abraços de cobras - e a floresta caminhava contigo, deslizando sobre as neblinas matinais.
O teu caminho era tortuoso, ainda que a erva se estendesse fresca à tua frente. Cresciam-te rochas aos pés e os regadios transbordavam de exaltação. Estendias os braços e os corvos nasciam-te das mãos. Viravas a cabeça e soltavam-se tornados dos teus cabelos. Fúria imensa.

As duas léguas desdobravam-se, intermináveis, e eu sabia que naquele campo não havia batalha que pudesse vencer ou armaduras para ferir de morte. Todas as minhas lanças se renderiam inúteis.
Por fim, tomada do cansaço alcançaste o passadiço. Acenei-te do alto e os teus lábios esboçaram o sorriso, mas os olhos marejados de penas negras não me puderam então ver. E em silêncio recolheste aos teus quartos.

E apenas nos vimos de novo à ceia, na Primavera seguinte.


(dedicado à Morgana La Folle)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A Passagem Interior

Onde antes todo eu era sol avançam hoje os fiordes, de novo para as águas. Um estranho calor desprende-se deste mundo puro, como a seda das tuas mãos.
As águas negras, imensas, de profundidades milenares, despedem-se dos oceanos e tomam por fim o rumo dos estreitos e das passagens, das grandes plataformas de gelo, entre a terra mãe e os cumes dos arquipélagos.
São os domínios das águias reais e douradas, dos ursos castanhos e dos grandes cetáceos - de todos os olhos negros, mágicos e inalcançáveis onde habita ainda o Deus dos primeiros dias. Um mundo entre os mundos. O maior de todos e o único.
O tempo, esse, entra na passagem interior como todas as criaturas, tomado do pasmo das alturas e do azul dos glaciares. Chega com os homens mas vive um pouco menos do que estes. A vida, enquanto coisa nossa, nada mais é do que um suspiro, afinal, um leve agitar das brumas de onde emergem os navios.
E todos os navios são fantasmas. Todas as brumas. Todas estrelas sobre o Árctico.
Não sei onde me encontrar, sem me sentir perdido.
Mas daqui, do fundo e do alto, percebo o âmago destas coisas mais do que a mim mesmo.
Este é o meu mundo.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

O Bosque

No centro do bosque, esquecido em cima da sela, as árvores dançavam à sua volta. Tudo era mais veloz do que o tempo preciso para nomear as coisas. Imóvel, os braços pendendo e há muito por si esquecidos, ondulavam na brisa verde musgo.
O cavalo arremessava as crinas com movimentos erráticos do pescoço tentando afastar, também ele, aquele sentimento confuso de ter perdido os nomes, esquecido os caminhos e o sabor das plantas.
Era um mar escuro, imenso, de criaturas estranhas sem a aparência das formas, e até onde a vista alcançava nada havia, de outrora conhecido, que perdurasse.
Todas as canções se esfumavam no vento simples que silvava por entre as fendas da viseira do seu elmo. Não era Bóreas ou Zéfiro, Sirocco ou Levante. Era apenas um redemoinho de todas as coisas soltas.
Os laços haviam-se quebrado e aquilo que antes tão ciosamente guardara no cofre férreo do coração escorria agora, solto, entre as pedras.