A grande Catedral fora terminada há mil anos. Resistia ainda, conspurcada no exterior por um emaranhado de luzeiros e fitas coloridas e pelos enormes paineis que anunciavam a comida fácil (de fazer, comer e vomitar). No seu interior, no lugar dos antigos fiéis acotovelava-se o povo ao longo das bancas do mercado assente num exército de ratazanas e couves podres.
O altar (com o seu anjo há muito vendado) ainda lá estava, e num dia de sorte era possível vencer as filas que se empurravam pela nave e alcançá-lo para obter o acesso aos juízes e aos negócios menores do estado que dividiam a antiga zona do coro. Tudo o resto eram ministérios envoltos em vidralhada negra e de mais escuros propósitos.
As novas chegaram já tarde na noite e o pior acontecera; o Usurpador, que dividira a meio a colónia anos antes, estava de regresso. Quebrara-se assim o último fio de razão.
Foi como se mil rastilhos de pólvora se acendessem. Todos correram para as ruas e praças e a Catedral, pela primeira vez em décadas (desde a última Grande Desinfestação) ficou vazia. O silêncio sepulcral espreitou receoso por entre as colunas e, majestosamente, reclamou aos poucos o espaço antigo: vinha para ficar.
Sabia-se, pelos olhares selváticos contidos a custo nos anos que antecederam a entronização, que as suas celebrações trariam muita morte. Era de facto um apocalipse anunciado, tal como se contava nos antigos escritos.
Pela madrugada os gritos tornaram-se esparsos e cada vez mais inumanos; homens, mulheres e crianças tombavam, simplesmente; qualquer espaço era bom para esmagar um crânio ou decepar um pé. A morte vinha implacável, independente das causas; a morte era verdade - essa palavra estranha que deixara de ser ensinada nas escolas.
Os cães correram para Norte velozes pelas estradas e todos os bichos os seguiram; contava-se à boca fechada que ainda existiam florestas e era chegada a hora de as descobrir.
Pelas três da tarde os céus cobriram-se de chumbo; racharam-se as paredes e delas saíram cobras que se julgavam extintas. Os chãos abriram-se e todos os corpos foram sugados de forma lenta e impiedosa, deixando atrás de si um rasto de unhas cravadas no alcatrão. Depois foi cair num negro sem fim, sem vento, sem som.
Para alguns, sem que o tempo ou movimento pudessem ser medidos, sobreveio a certeza de si mesmos; foi uma humidade, uma espécie de abraço que lhes devolveu braços e pernas, e juntos rastejaram na direcção possível: estariam vivos, afinal?
Primeiro foi um cheiro inebriante de terra; depois uma luz ténue e um súbito raio de sol que iluminou todo o poço, as paredes cobertas de larvas humanas, de olhos fora das órbitas.
Não reconheceram os seus corpos, antes débeis e que, agora, num arfar de músculos bem treinados os alçavam para o espaço aberto. Reconheceram sim aquele tempo distante, em que jamais haviam vivido.
Um espaço imenso e vazio que reflectia o céu azul e, lá longe, a Catedral em construção.
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