quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A Besta. III. Lilith

Esta noite mandarei abrir todos os portões e partir os vidros das janelas, para que venhas, então, mais cedo.
Os archotes suspensos da penumbra, dos tectos altos, escoltar-te-ão por estes corredores húmidos até ao teu salão favorito, das lareiras. Bruxuleantes e esfaimadas, como tu. E desde cedo no dia que nada lhes foi recusado para que depois te aqueçam, submissas.
A Côrte deixou também estas muralhas, para que à ceia nenhuma conversa abafe o teu rilhar dos ossos ou o escorrer dos vinhos na tua garganta de veludo, azul.
Sons que embalam o sono no meu leito, aqui, que te aguardo no breve alívio dos músculos rasgados do clangor das lâminas e das cicatrizes.
Vem então, ao verdadeiro repasto, àquele em que pensavas enquanto lambias dos dedos o recheio das perdizes. Levarás enfim o sangue que me resta. Mas sempre o soube e por isso recebe-o, se te o dou.
Não me acordes. No torpor do sono perdi as minha únicas batalhas, mas mesmo essas já viram todos os seus dias.

Amanhã, no frio dos dias do Inverno do Inferno, arrasarei este castelo, convocarei todos os demónios e hecatombes, todas as bestas e tempestades, e com a fúria dos anjos não sobrará pedra sobre pedra sobre a terra. Nem mais fio deste véu, que pintaste com os tons do paraíso quando, viva, eras Rainha.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Renascer



De regresso à Catedral,
Entre as paredes deste meu castelo,
Subo as entranhas, Até um terraço
varrido de ventos mais velhos que o espaço
deste mundo estranhamente belo,
E abraço o céu que me guarda, Desde um tempo imemorial.

Longínquas pedras, Nunca são demais
estes pilares onde o céu repousa.
E sob estas pontes verticais passa o tempo como um rio
imenso. Mas maior é o calafrio
daquele que como eu, Ousa
a clausura nestes túneis, Que se elevam bem do fundo e do centro das Catedrais.

Esta escada é um ventre aberto.
Derrama a luz sobre o escuro
fardo da impotência,
Sobre este sentir de demência,
Que uma vez quebrado não mais será como um muro
entre o ser Eu e o ser Certo.



(Gotik Raal sobre sons de Arcana, "Lovelorn")

terça-feira, 21 de outubro de 2008

A Besta. II. O Confronto

Era a hora de Matinas.
Surgidos da copa das árvores a oriente, cinco anjos entraram no campo de batalha formando uma cruz. As suas vestes eram da côr do céu da noite em lua cheia, e das suas asas, dos seus cabelos longos, pendiam os reflexos azul-hematita dos corvos negros. Imóveis, as palmas das mãos unidas sob o queixo, as faces de uma palidez e serenidade inabaláveis, varriam os céus. E o seu rasto era de fogo.
Do nada, da sombra das árvores a Norte, surgiu um cavaleiro e seu cavalo, brancos da côr dos gêlos que cobrem os reinos mais longínquos que a memória alcança, mas onde homem algum jamais ousou pisar. Foices de prata pendiam dos arreiros escarlate, e um vermelho-sangue tingia lentamente as patas em estilete da montada. Do seu galope largo não sobrava qualquer som. E o seu rasto era de cinzas.
Soldados moribundos, apenas aqueles a quem os olhos haviam sido poupados e cujo sangue corria ainda quente nas veias, assistiram ao embate; uma dança errática plena de ângulos rectos, de quadrados brancos e pretos, um xadrez feroz e protector, pleno na certeza de cada lançe: três homens para Sul, dois para Oeste. Vens comigo.

Corpo algum em cinzas mais se incendiaria e também nenhum em chamas se extinguiu. O clamar das almas era definitivo, sem resposta e sem regresso.

Antecipei aquele momento por um breve instante, em que me vi na mira dos exércitos. E desejei-os ambos, com partes distintas do meu querer. Mas quão longe era a luxúria de outros tempos, presa de um sêr breve que já não era, também, o meu.
Alcançou-me primeiro a Morte. O seu elmo e a viseira do cavalo guardavam órbitas vazias. Fixaram-me os olhos sem me vêr e fui poupado, a Morte é cega. Às cinzas perdi um braço e deixei-o ir.
Et si dextera manus tua scandalizat te abscide eam et proice abs te expedit tibi ut pereat unum membrorum tuorum quam totum corpus tuum eat in gehennam.
Depois vieram os anjos, cinco eles vieram formando uma cruz. Seguia-os o seu séquito de almas douradas. Julguei-me salvo e olhei-os, eu. Mas só pude ver a minha tristeza reflectida num canto onírico de um olhar, do anjo ao centro, no cruzeiro.

E depois, com o primeiro raio de luz, tudo se aquietou naquele manto de cinza e fogo.
Havia sido desprezado pelo Céu e pelo Inferno.
Mas que terra é esta que me acolhe agora, com sombras que não conheço e sóis que nunca antes vi? Estou sozinho. Não é a quietude da morte que me assalta, mas a certeza neste céu da boca de criatura nova e solitária, destes muros altos conquanto invisíveis que ma amparam, desta sede de sangue que enlouquece; como se por ele pudesse negar esta figura ímpar que é a minha, perder-me no sabor de uma maçã, ser tarde, ter sono e outra vez poder dormir.
Levanto-me agora e ergo da lama esta armadura; ostenta a carne dilacerada em cada cravo, e sigo assim para onde o Sol se punha.
Nesta solidão imensa choram-me os cantos da boca lágrimas de sangue. Os olhos, esses, retêm nas pálpebras a têmpera do teu rosto.

(Latim: Mateus 5:30)

sábado, 18 de outubro de 2008

A Besta

Pela vasta planície, vigiada de longe pela fina orla das árvores, a Morte passa devagar. Os seus passos cadenciados e profundos não escolhem campo e abrem clareiras de sangue como nenúfares através da amálgama de armaduras.

A Morte não chega.

Os homens reúnem-se em volta da besta, dois a dois, numa dança viril de braços, pernas e manivelas, setas e ponteiras de aço, levando ao rubro a tensão das cordas de fibra. Este é momento, do perigo máximo, da exposição absurda às intempéries do ferro alheio, do demorado ritual, este é o tempo do carrasco. Depois um grito e o arc-en-ciel pleno de silvos alcança o zénite. Por um instante supremo tudo se detém no êxtase contemplativo daquela cortina de aço. Eis que desce agora, matilha uivante, no mergulho final tão belo como a morte.


Mas a Morte não chega.


É necessário que arranque olhos às suas órbitas, que perfure e, com o estrondo dos sinos, atravesse couraças em busca do precioso líquido, bombeado por corações enlouquecidos. Uma imensa representação da vida, maior do que a vida, para lá do cair do pano da noite; nesse palco que muitos elegeram como última morada.


E a morte não chega.


Enterrado sob os cadáveres, espero-a. São visões magnificas de pilhas humanas, vermelho e prata brilhando à luz das estrelas; dos gritos das raposas e dos abutres. Das minhas memórias desfilando a tropel, distorcidas de tamanhos insuspeitados, do pouco que afinal eram, do quanto nunca lhes reconheci. A candura dos amores antigos - novíssimos ódios, e a estirpe dos meus falcões adormecidos, sobre o meu ventre aberto.
Que fui eu afinal, a mais do que as vidas que fiz e que ceifei, castelos que erigi e arrasei, de quanto desejei e se cumpriu, de tudo em que excedi o meu desejo.
Dos sulcos profundos nas estradas, das marcas nos corpos que trilhei, dos filhos que tive e não amei, do teu coração partido, sem remédio.
Mas o fim vem a passo certo e tudo o que fui não mais será, dando-me esse descanso porque anseio.


Não. A Morte não chega.






quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Túmulos

Hoje, apenas uma escrita sonora dos mesmos "Túmulos" de ontem.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Túmulos

Lua e mercúrio num céu de chumbo.
Depois, florestas de galhos retorcidos nos campos de batalha.
Ervas oceânicas, ondulando de insectos e, em baixo, xistos esparsos de costelas.
A terra húmida, de apertada cota de malha férrea - e vermes, de dedos sem as suas mãos.
E mais terra arfando do peso do mundo e dos carvalhos; e naus que navegam imóveis nas suas entranhas, sem vento ou vela.
Um sepulcro, de ar rarefeito com o óxido dos séculos.
Os teus olhos glaucos, fixos na escuridão do silêncio eterno.

Mas renasceste longe, para lá das areias e do sol ocre dos desertos.
Do tempo de além-túmulo chega-te apenas um sopro agudo de uma indizível tristeza: aquela de um último cruzado, elmo chispando com um brilho de alma ausente, para sempre montando guarda ao teu corpo inerte.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Narthex

Entre o altar e a loucura, entre os homens e a peste. 
Negaram-te a passagem, mas ainda assim te desejaram perto. Fecharam-te a porta mas por ti escolheram passar para a alcançar. 
Estes são os tempos do pão, da expiação e do baptismo. Da eterna lembrança do que és, dos seios ligados e escondidos sob as túnicas grosseiras, das almas aradas como os campos. 
Há sempre uma estrada. Muitos dias de montada nos trilhos de Santiago. Rios púrpura de vinho e sangue. In taberna quando sumus non curamus quid sit humus.
Mas todos os caminhos te levam à Catedral.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Casamento Real

Quando 
contra tudo, contra todos, contra todo o bom senso, contra ti próprio, contra o teu desejo, contra a paixão, contra a segurança e contra a incerteza, contra o próprio amor, ainda assim amas.

domingo, 12 de outubro de 2008

Nosferatu

Verde é a noite; e o musgo, o cetim, a pele: o órgão vivo das trevas densas e estáticas que paralisam todos os sons. Morrem à nascença, nas gargantas, na anestesia dos dentes afiados.
Verde é o sangue, vermelho nos sonhos da noite eterna, de alcovas lacradas, de sedas, de rendas brancas.
Morre também o sol nas fronteiras do castelo que a vista alcança, tingindo de púrpura a pedra húmida das ameias estreitas.
Não entres. Entra, vem. O chão abre-se sob os teus pés movidos de vontade própria. O caminha é seguro, vem a mim.
O frio sobrenatural. Aqui, no conforto dos meus braços.

Num poço seco, na eternidade onde o nunca e o sempre se confundem, exalas então o último sopro da alma a que não mais chamarás tua.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Orphélie

Com a última batida das Laudas no campanário, o rio pôs-se em movimento. A superfície lisa das águas verdes recortava o seu corpo emerso como uma ilha e as suas faces lívidas, como um vulcão.
De braços apenas abertos, Orphélie navegou imperturbável no seu sono, os pés unidos, as palmas das mãos descrevendo um ângulo perfeito de quarenta e sete graus, os longos cabelos ruivos deixando um rasto brilhante de opalas à luz da manhã.
Da margem esquerda, desde sempre presa da noite mais sinistra, chegava-lhe o som de galhos partidos e o arfar intenso de todas as bestas que a acompanhavam numa cadência demoníaca, sucumbido umas às garras das outras, mas todas com os olhos de sangue cravados no seu coração.
Da outra margem, eternamente presa da noite mais bela, ecoava um bater veloz e frágil de cascos de um cavalo negro e negros eram os seus olhos, enormes.
A baixa da maré levou-lhe as águas deixando Orphélie presa da curva do rio e tudo se aquietou em seu redor. Sentou-se, as suas pálpebras cerradas, descendo as mãos sobre os cabelos e urdindo uma trança perfeita. 
Depois, num passo ligeiro e flutuante, desapareceu nos campos de trigo ensolarados.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Ábaco

Deslizam sob as pontas dos dedos gelados mas secos como papel, as contas do ábaco. O seu som confunde-se com o das justas distantes. Mas infinitamente mais letal, como os pregos do maço, as setas da besta ou os vapores do inferno, repousa o ábaco entre as madeiras dos longos tampos da mesa e das traves do tecto, no silêncio de veludo dos salões.
E, contudo, são tempos de certa justiça: do cálculo pendem cabeças e destinos, de camponeses, usurários, reis e clero.
E na falha deste sobra sempre a mão cortada do amanuense.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Campanário

Correndo sobre as searas como se algas fundo nos Mares, mas com a luz; cobrindo as distâncias com o canto cíclico e profundo das baleias, mas sem a angústia. Sólido como o voo dos falcões no céu e do céu recortado como os relógios de sol. 
Sem quebrar os silêncios, do sono leve acorda e varre a terra de hora a hora.
Impaciente, espero-o em vigília do meu túmulo e nunca consegui - ou quis - evitar o sobressalto.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Catherine Wheel

Unclean.
Do topo do morro, à distância de sete diâmetros, desembaraçou-se a besta das mãos do carrasco e fez tremer a terra sob os teus membros presos, na distenção máxima dos músculos. Os seus dentes cravaram-se na terra negra, um após o outro, num encurtar de distância lento e surdo, num crescendo de trovões anunciando os teus ossos estilhaçados.
Há muito que o teu corpo se fez jaula em vez de templo e foi chegado o momento de levantar âncora, de libertar-te das amarras dos tendões.
Sete diâmetros cumpridos e o teu grito último definhou rouco num manto de terror.
Jaz agora sobre a roda, o sudário descarnado, oco, do que foste.

domingo, 5 de outubro de 2008

A Fonte

Aquilo que sei, meu filho, ser-te-á indiferente e pelo teu próprio filho será esquecido. O esquecimento é como um sono intemporal do qual, por Ventura, se acorda. Aquele que dele acordar pelos outros será apontado e, se sobreviver, terá filhos que se assemelharão à copa das árvores frondosas. À sombra destas viverão criaturas de várias pequenas estaturas, e que disseminarão o senso comum sem contudo serem tocadas pelo seu fruto. Aqueles que comerem as maçãs sem terem fome, para si reclamarão toda a sabedoria como descoberta quando, na verdade, encontraram a mesa já posta.

Graal

Antes o ouro do que o jade. Antes o cálice do que o ouro. Antes o vinho do que o cálice. Antes a sede do que o vinho. Antes a sede.

sábado, 4 de outubro de 2008

Constelações

FIRMAMENTO
No léxico vivem ainda todas as eras.
UM RIO
Prenhe de sangue escarlate, hoje mesmo, esvai-se a pena em grafias de sedas e brocados, linhos e outros mantos mais grosseiros.
TEAR
Há sempre um codex por nascer, do nobre, do ideal, do artesão, do veado e da côdea de pão.
DAS BRUMAS
O mais sólido torreão emerge de águas lamacentas e as palavras tomam-se do ar quente e ascendente nas colinas, esperando apenas que as sigas.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Ponte em Ruínas

Onde foi que nos perdemos. Quando foi que olhando para trás e vendo o caminho, não mais o reconhecemos; que os laços com o Mundo se quebraram deixando-o cativo de vaguear por todas as dimensões enquanto nós, livremente, nos encarcerámos no trilho do futuro, que vai do abismo ao vácuo.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Transepto

Aqui, estendido sobre estas pedras do cruzeiro, tomado de vertigem.
Aqui, sob o encastre dos pontos cardeais, braços abertos com o Norte e o Sul na palma das mãos, este é o eixo mais curto. Em direcção ao oriente se faz o outro caminho, através do meu coração pisado como avenidas.
E no entanto é bem ténue esta força que me prende às lages do chão e sinto o alto como um poço.
Aqui onde todos os tempos se cruzam, como o brilho colorido e difuso dos harmónicos; e que contudo empalidecem perante o silêncio sombrio, sepulcral, do tempo antes e depois dos tempos, do sempre, da fundamental.
Inaudível mas presente, estremecem ainda estas paredes com reflexões infímas do som dos antigos martelos e bigornas, das vozes da Rainha e do Mestre-de-Obras.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Prologue

Sob estas pedras, cobertas pelo pó do silêncio dos séculos, corre um rio exangue. Secou, às brasas do dia dezanove, corria o mês de Julho de mil quatrocentos e quinze.