quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Fata Morgana

Naquela manhã todos os bichos dormiram um pouco mais. 
Numa breve existência fóssil aguardavam que o calor do dia, de um sol morno e sereno como um lago, afastasse a fina camada de geada que a noite lhes emprestara, como um manto. Todos os sons eram ainda em silêncio e os sinos e os monges do mosteiro haviam falhado as Laudes.
No horizonte a perder de vista alongava-se a miragem do teu castelo, escura e densa; tomada de uma vibração imperceptível anunciava o teu regresso.
Do alto das minhas muralhas, envolto nas peles da última caçada e as pálpebras tão quietas como as pedras da torre, avistei-te, por fim, a duas léguas.
Trazias a tua floresta, um círculo mágico de raizes altas e ramagens em abraços de cobras - e a floresta caminhava contigo, deslizando sobre as neblinas matinais.
O teu caminho era tortuoso, ainda que a erva se estendesse fresca à tua frente. Cresciam-te rochas aos pés e os regadios transbordavam de exaltação. Estendias os braços e os corvos nasciam-te das mãos. Viravas a cabeça e soltavam-se tornados dos teus cabelos. Fúria imensa.

As duas léguas desdobravam-se, intermináveis, e eu sabia que naquele campo não havia batalha que pudesse vencer ou armaduras para ferir de morte. Todas as minhas lanças se renderiam inúteis.
Por fim, tomada do cansaço alcançaste o passadiço. Acenei-te do alto e os teus lábios esboçaram o sorriso, mas os olhos marejados de penas negras não me puderam então ver. E em silêncio recolheste aos teus quartos.

E apenas nos vimos de novo à ceia, na Primavera seguinte.


(dedicado à Morgana La Folle)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A Passagem Interior

Onde antes todo eu era sol avançam hoje os fiordes, de novo para as águas. Um estranho calor desprende-se deste mundo puro, como a seda das tuas mãos.
As águas negras, imensas, de profundidades milenares, despedem-se dos oceanos e tomam por fim o rumo dos estreitos e das passagens, das grandes plataformas de gelo, entre a terra mãe e os cumes dos arquipélagos.
São os domínios das águias reais e douradas, dos ursos castanhos e dos grandes cetáceos - de todos os olhos negros, mágicos e inalcançáveis onde habita ainda o Deus dos primeiros dias. Um mundo entre os mundos. O maior de todos e o único.
O tempo, esse, entra na passagem interior como todas as criaturas, tomado do pasmo das alturas e do azul dos glaciares. Chega com os homens mas vive um pouco menos do que estes. A vida, enquanto coisa nossa, nada mais é do que um suspiro, afinal, um leve agitar das brumas de onde emergem os navios.
E todos os navios são fantasmas. Todas as brumas. Todas estrelas sobre o Árctico.
Não sei onde me encontrar, sem me sentir perdido.
Mas daqui, do fundo e do alto, percebo o âmago destas coisas mais do que a mim mesmo.
Este é o meu mundo.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

O Bosque

No centro do bosque, esquecido em cima da sela, as árvores dançavam à sua volta. Tudo era mais veloz do que o tempo preciso para nomear as coisas. Imóvel, os braços pendendo e há muito por si esquecidos, ondulavam na brisa verde musgo.
O cavalo arremessava as crinas com movimentos erráticos do pescoço tentando afastar, também ele, aquele sentimento confuso de ter perdido os nomes, esquecido os caminhos e o sabor das plantas.
Era um mar escuro, imenso, de criaturas estranhas sem a aparência das formas, e até onde a vista alcançava nada havia, de outrora conhecido, que perdurasse.
Todas as canções se esfumavam no vento simples que silvava por entre as fendas da viseira do seu elmo. Não era Bóreas ou Zéfiro, Sirocco ou Levante. Era apenas um redemoinho de todas as coisas soltas.
Os laços haviam-se quebrado e aquilo que antes tão ciosamente guardara no cofre férreo do coração escorria agora, solto, entre as pedras.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Sarraceniaceae

Na noite, as trevas distinguem-se pela densidade. Do escuro ordinário estas se distinguem.
É um negro que envolve, como o abraço das plantas carnívoras, cheio de silêncios, em que os gritos morrem na boca. Gritos como a fome, como a dor. Gritos como o amor, essa criatura de sanguessugas.
Na noite as trevas aguardam, apenas.
E ao contrário dos grandes carnívoros das estepes, o seu fervor arde sob o manto nocturno, enlouquecido, na imobilidade. Todos os espíritos se acotovelam, estendendo as mão translúcidas, esses ogres do desejo. É um querer funéreo, de gargantas secas; de terras exauridas, sem pousio.
E todas as vítimas então se precipitam; e é seu, e é esse, o desejo da morte. Com os olhos ao alto, e à distância de um único passo, mergulham por fim nos precipícios da alma. São as crateras abertas, na ausência, na tristeza de si.

Depois, acorda-se para descobrir que a manhã nunca chegou a nascer e que as trevas de ontem são os poros da pele de hoje, e que subitamente o tempo é um contínuo transversal, um arco-de-chuva negro; um colosso helénico, feito do frio do bronze, as imensas pernas abertas unindo os portos inseguros e as estrelas.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Dogma




Na solidez da rocha assentam as mais altas construções,
e nem todas as palavras juntas dizem da mais humilde revelação;
E lá longe, no lugar onde a terra abrupta acaba, é apenas o princípio do céu.

Pois que a imensidão de Ciência é só o corpo de um lago nocturno,
que termina na superfície das águas, acima das quais nada existe.


No mais ínfimo grão de areia se presta culto ao maior dos templos,
e o sol mais abrasador é apenas um brilho fugaz na janela do meu catre;
E no entendimento profundo do imutável, se encontra a chave das infinitas possibilidades.

Pois que no incompreensível reside o inexplicável, 
e na frase mais curta, o indizível.


quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Annapurna


Catedral dos meus sentidos,
deste espaço imenso à minha volta;
onde a terra corre agora, e sempre solta
entre as fendas dos meus ossos já partidos.

Quisera eu jamais te magoar,
mas foi chegada a hora de subir;
galgar os ventos, as escarpas, decidir
que este sono do meu sangue, há que arrancar.

Seguir-me-ás depois, por fim, um dia,
quando as nuvens do meu céu te alcançarem;
e as tuas negras veias reclamarem
do teu ser, da alma, a vasta geografia.


sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Nocturno

Com o fresco da manhã a dor aquietou-se.
As feridas sofridas na noite tomam-se de uma atenção ímpar; os tímpanos perfurados, os dentes rotos. Os ossos escanados e as unhas que crescem tortas, furando as massas do crânio. Ainda que, e apesar dos suores dos corpos - pois que a noite é inimiga de todas as anatomias.
No entanto ali era só eu, naquela noite em que sofri os horrores dos meus sentidos. Entregue a mim próprio não encontrei melhor carrasco.
Infligi-me as maiores torturas, as mais sangrentas imagens, os sons mais lancinantes emergindo das minhas entranhas abafadas no resguardo do linho dos lençóis e do peso das mantas.
Nessa noite, todos os sonos soltos corriam, vorazes, as alas do castelo. E contudo deixaram o arco da minha câmara envolto nas sombras do silêncio. A vigília nocturna é coisa da maior solidão.
E a solidão é isso. A ausência da alma que deixa entregue ao corpo frágil a consciência. Aquele instante singular em que nos vemos de costas.
Ausente, e num raro vislumbre do homem, filho do homem, apenas a dor excruciante impediu a ruína do meu corpo.
Mas com o fresco da manhã a dor aquietou-se, e por fim adormeci.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

"En ma Fin gît mon Commencement"

Descansa. O corte no teu peito não é assim tão fundo. O coração está ainda à guarda das costelas.
A morte passou ao largo, desta vez; e vai já longe, indiferente ao teu rasto de sangue.
Não te deixes dominar pelo medo. Aquilo que tu és, realmente, e embora ignorante, é intocável.
Devias levantar tenda e seguir viagem, neste instante, ainda que o teu corpo não te possa seguir. Mas no momento em que partires serás apenas o teu íntimo - e desse modo saberás quão grande és, agora que livre da carne.
Não te distraias, não podes. Não deixes, dessa forma, que todas as manhãs do mundo te interrompam a noite, que é só tua.
O caminho que escolheres será O caminho, ainda que apenas o teu. Nada se pode opor a quem tem o sangue frio de ver no seu reflexo o seu maior assombro.
Agora que subiste ao púlpito da tua consciência, descobriste em toda a assembleia não mais do que a face contraída dos teus anseios.
Deste a volta ao mundo e no fim disseste - enquanto, num gesto de incomensurável graciosidade, descobrias à lâmina o teu pescoço de infinita elegância: "No meu fim está o meu princípio."



(Gotik Raal sobre sons de Michael Nyman, Hilary Summers, "If")

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Pater

De todos os luzeiros do céu, sei lêr os que falam do teu nome.

E quão curto é o tempo entre o aqui e o sempre, pois se o sempre é também o aqui e o agora.

sábado, 15 de novembro de 2008

O Silvo da Serpente

Veloz, como a sombra nos relógios de sol à passagem dos cometas, carregando em si mesmo o prenúncio e o desígnio da morte.
O tempo ampliado na súbita e aguda consciência do silvo, do ganir de cães.
O som grave e cheio, de um sangue azul implacável de avalanches.
E a perfeita circunferência traçada na ponta da espada, secante à jugular.

O pescoço a romper, todas as cordas da lira, uma por uma estalando ao ar seco de um fim de tarde. O final do estio.
E o resto de um fôlego, no último e milionésimo adeus ao calafrio do aço.

E esse instante gravado a ferro e fogo naquele olhar fixo, incrédulo, da cabeça a rolar por entre as ervas.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Túmulos. III.

A barca imobilizou-se às portas do grande deserto branco. "Sois chegado ao vosso destino."
Do véu de neblina, que espalhava o silêncio das águas geladas àquelas primeiras horas, emergiu o dorso de uma baleia azul e o barqueiro disse: "Eis o vosso guia."
Depois, juntos varremos as ondas sem rasto ou espuma, os vertiginosos e oceânicos abismos, as rochas negras de azul e, por fim, o labirinto de fiordes que se abriu ao vasto manto polar. Sobre o gelo, dois ursos brancos, e a baleia disse: "Eis a vossa guarda."
E então juntos caminhámos para Norte, seguindo o trilho aberto pelas nuvens, a elite dos exércitos boreais no cume do mundo, para lá do alcance da mais poderosa das bestas. 
"Este é o vosso rei", disseram os ursos às donzelas e eu segui-as; três raposas do Árctico num rasto de sangue de leões marinhos, por três dias e três noites em que o Sol nunca se pôs.

E quando de novo olhei o céu já não o vi. Nem céu nem alto, ou algo ao seu redor. Nem gelo no horizonte ou sob os pés. Nem pés nem corpo ou espada no meu punho. Em tudo, apenas, o mesmo branco neve longe ou perto, nem sombra de miragem ou deserto, nem deste que aqui estou, envolto neste manto sem o ver.

Apenas esta consciência: de não ser mais que ser eu, que não se apaga.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Daedalus

Nós os dois,
somos a Lua.
Tu
és a face oculta.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Túmulos. II.

Escuto a ressonância diáfana dos passos no embarcadouro, 
o macio entrechocar de vozes que se abraçam e depois, juntas, mergulham nas águas verdes. 
Descem pela trança de algas, essa espiral que, das pedras maceradas pelas rodas das carroças, conduz às grades do meu elmo. 
Amortalhado neste casco aberto, meus são todos os gestos do silêncio. As guelras, os labirintos de água, a eternidade deste breve abismo suspensa do voo dos falcões. 

No fundo do lago,
descanso.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Números



I, II, III, V,
VII números
primos, que nós éramos.
E depois rimo-nos
da singularidade.

domingo, 9 de novembro de 2008

Nuvens



Mais do que o tempo são as nuvens neste céu,
esses gigantes
das vastas planícies onde os pássaros se deitam.
Nuvens dos meus olhos, que se elevam e deleitam
nos feitos importantes,
dos dias em que o reino, mais além, aconteceu.

Por esse mundo imenso, à vela
velha nau, que é deste azul à beira mar,
esquece a rota sem destino que é a morte.
Sempre mais, de outras viagens, de outra sorte!
Desta terra sobre o mar - que é navegar,
se lembrarão depois os feitos, sobre a tela.

E tudo quanto sou a ti o devo, afinal.
A ti, que me tiveste e me fizeste, deste zelo.
E se, alguma vez, me enfureceste
foi nos dias em que cego te esqueceste
do quanto já foste, sempre e tanto, e tão mais belo.
Portugal.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Peste Negra

O sangue agrilhoado na cabeça, nos ouvidos. Os olhos desvairados procurando, por entre as traves do tecto, um fenda qualquer que liberte a alma. E o sabor metálico das pedradas nas têmporas, que escavam sem descanso as palhas velhas da cama. E o corpo a queimar de vulcões e lava de pús.
A porta abre-se num rilhar de dentes e o médico entra, espectral, numa procissão de passos curtos, mãos insensíveis nas mangas, envoltas naquela pele de cetim negro que lhe cobre todo o corpo reflectindo, imaculada, a imundície dos aposentos.

Há algum tempo, já, que os ratos partiram. Naquele dia em que a Lua, pousada na linha dos telhados e das muralhas, foi maior do que o Sol. Naquela noite em que as cidades transbordaram e os cães danados saíram das sarjetas, num galopar infernal de unhas estilhaçadas nas pedras das ruas estreitas.
Exibindo como troféus as pulgas e as carraças aprisionadas nos excrementos secos que cobriam o seu pêlo branco, tomaram todas as casas, todos os vãos de escadas, todas as fossas. E as línguas bifurcadas e pendentes de um rosa pálido-morte, marcaram e para si reclamaram de todos os vivos, dois em cada três.

E o médico, olhos agudos no crânio fóssil das pinturas de Mestre Bosch, desceu sobre o enfermo como uma cegonha de água. E o terror. À sua visão o sangue correu mais célere, gotejando em cada poro daquela pele de bubos, outrora lisa. E como uma cegonha se ergueu, no único juízo daqueles dias de condenados, e sem proferir palavra, disse:

"Larga o corpo. Vai-te."

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

A Légua

Silhueta, mais negra que a noite escura, imóvel sob a chuva que teima em lavar a terra dos terrores que se fazem aos caminhos só depois da hora de Completas. Imóvel, no seu cavalo da côr do breu das luas novas, a espada pendendo na impotência do fluir dos demónios. Cabeça baixa, ambos, cavalo e cavaleiro. Trespassado dos risos histéricos, dos lamentos e das agonias, numa transparência que não sem dôr, numa dôr inatingível senão pelos caminhos da verdade, das selvas amazónicas do Sêr, das florestas virgens da Alma, essa viagem.
Naquele instante, dos olhos esfumados das memórias e da articulada textura da chuva caindo sobre a sela, a existência era a maior das penas. Instantes como aquele, em que o Universo se cristaliza num acontecimento singular de proporções incomensuráveis, acontecem apenas uma vez - pois que não duas ou três - na vida de um homem. Cristo teve os seus, mas Ele Todo era esse momento, essa transcendência em que o Homem indefeso, apenas sendo, não conhece fronteira; em que a consciência da total insuficiência é o maior e mais sólido dos templos.
Mas isso não o sabia ele, na altura. Soubera-o antes e decerto o lembraria depois, se depois houvesse. Pois que a vida corria gota a gota, como a chuva. Mas sem que o adivinhasse, uma lágrima sua, vertida sobre a terra, ensanguentaria todos os oceanos e mares, todos os ribeiros e charcos, todas as Lágrimas.
E no entanto era aquele o caminho, que se estendia perante si, simples como um regadio.
Uma légua à sua frente, uma estalagem. Um pão duro e uma caneca da boa cerveja amarga, do lúpulo. A lareira, devolvendo aos olhos o seu brilho. Um calor.
Uma escada de grossas traves enegrecidas, uma porta e uma cama sem dossel.
Uma janela, vidros sujos dos matizes das cores dos prados. A sombra a dar lugar ao dia, descobrindo a estrada do seu manto Nocturno.
Um cheiro inebriante de alfazemas, como a Vida.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A Besta. III. Lilith

Esta noite mandarei abrir todos os portões e partir os vidros das janelas, para que venhas, então, mais cedo.
Os archotes suspensos da penumbra, dos tectos altos, escoltar-te-ão por estes corredores húmidos até ao teu salão favorito, das lareiras. Bruxuleantes e esfaimadas, como tu. E desde cedo no dia que nada lhes foi recusado para que depois te aqueçam, submissas.
A Côrte deixou também estas muralhas, para que à ceia nenhuma conversa abafe o teu rilhar dos ossos ou o escorrer dos vinhos na tua garganta de veludo, azul.
Sons que embalam o sono no meu leito, aqui, que te aguardo no breve alívio dos músculos rasgados do clangor das lâminas e das cicatrizes.
Vem então, ao verdadeiro repasto, àquele em que pensavas enquanto lambias dos dedos o recheio das perdizes. Levarás enfim o sangue que me resta. Mas sempre o soube e por isso recebe-o, se te o dou.
Não me acordes. No torpor do sono perdi as minha únicas batalhas, mas mesmo essas já viram todos os seus dias.

Amanhã, no frio dos dias do Inverno do Inferno, arrasarei este castelo, convocarei todos os demónios e hecatombes, todas as bestas e tempestades, e com a fúria dos anjos não sobrará pedra sobre pedra sobre a terra. Nem mais fio deste véu, que pintaste com os tons do paraíso quando, viva, eras Rainha.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Renascer



De regresso à Catedral,
Entre as paredes deste meu castelo,
Subo as entranhas, Até um terraço
varrido de ventos mais velhos que o espaço
deste mundo estranhamente belo,
E abraço o céu que me guarda, Desde um tempo imemorial.

Longínquas pedras, Nunca são demais
estes pilares onde o céu repousa.
E sob estas pontes verticais passa o tempo como um rio
imenso. Mas maior é o calafrio
daquele que como eu, Ousa
a clausura nestes túneis, Que se elevam bem do fundo e do centro das Catedrais.

Esta escada é um ventre aberto.
Derrama a luz sobre o escuro
fardo da impotência,
Sobre este sentir de demência,
Que uma vez quebrado não mais será como um muro
entre o ser Eu e o ser Certo.



(Gotik Raal sobre sons de Arcana, "Lovelorn")

terça-feira, 21 de outubro de 2008

A Besta. II. O Confronto

Era a hora de Matinas.
Surgidos da copa das árvores a oriente, cinco anjos entraram no campo de batalha formando uma cruz. As suas vestes eram da côr do céu da noite em lua cheia, e das suas asas, dos seus cabelos longos, pendiam os reflexos azul-hematita dos corvos negros. Imóveis, as palmas das mãos unidas sob o queixo, as faces de uma palidez e serenidade inabaláveis, varriam os céus. E o seu rasto era de fogo.
Do nada, da sombra das árvores a Norte, surgiu um cavaleiro e seu cavalo, brancos da côr dos gêlos que cobrem os reinos mais longínquos que a memória alcança, mas onde homem algum jamais ousou pisar. Foices de prata pendiam dos arreiros escarlate, e um vermelho-sangue tingia lentamente as patas em estilete da montada. Do seu galope largo não sobrava qualquer som. E o seu rasto era de cinzas.
Soldados moribundos, apenas aqueles a quem os olhos haviam sido poupados e cujo sangue corria ainda quente nas veias, assistiram ao embate; uma dança errática plena de ângulos rectos, de quadrados brancos e pretos, um xadrez feroz e protector, pleno na certeza de cada lançe: três homens para Sul, dois para Oeste. Vens comigo.

Corpo algum em cinzas mais se incendiaria e também nenhum em chamas se extinguiu. O clamar das almas era definitivo, sem resposta e sem regresso.

Antecipei aquele momento por um breve instante, em que me vi na mira dos exércitos. E desejei-os ambos, com partes distintas do meu querer. Mas quão longe era a luxúria de outros tempos, presa de um sêr breve que já não era, também, o meu.
Alcançou-me primeiro a Morte. O seu elmo e a viseira do cavalo guardavam órbitas vazias. Fixaram-me os olhos sem me vêr e fui poupado, a Morte é cega. Às cinzas perdi um braço e deixei-o ir.
Et si dextera manus tua scandalizat te abscide eam et proice abs te expedit tibi ut pereat unum membrorum tuorum quam totum corpus tuum eat in gehennam.
Depois vieram os anjos, cinco eles vieram formando uma cruz. Seguia-os o seu séquito de almas douradas. Julguei-me salvo e olhei-os, eu. Mas só pude ver a minha tristeza reflectida num canto onírico de um olhar, do anjo ao centro, no cruzeiro.

E depois, com o primeiro raio de luz, tudo se aquietou naquele manto de cinza e fogo.
Havia sido desprezado pelo Céu e pelo Inferno.
Mas que terra é esta que me acolhe agora, com sombras que não conheço e sóis que nunca antes vi? Estou sozinho. Não é a quietude da morte que me assalta, mas a certeza neste céu da boca de criatura nova e solitária, destes muros altos conquanto invisíveis que ma amparam, desta sede de sangue que enlouquece; como se por ele pudesse negar esta figura ímpar que é a minha, perder-me no sabor de uma maçã, ser tarde, ter sono e outra vez poder dormir.
Levanto-me agora e ergo da lama esta armadura; ostenta a carne dilacerada em cada cravo, e sigo assim para onde o Sol se punha.
Nesta solidão imensa choram-me os cantos da boca lágrimas de sangue. Os olhos, esses, retêm nas pálpebras a têmpera do teu rosto.

(Latim: Mateus 5:30)

sábado, 18 de outubro de 2008

A Besta

Pela vasta planície, vigiada de longe pela fina orla das árvores, a Morte passa devagar. Os seus passos cadenciados e profundos não escolhem campo e abrem clareiras de sangue como nenúfares através da amálgama de armaduras.

A Morte não chega.

Os homens reúnem-se em volta da besta, dois a dois, numa dança viril de braços, pernas e manivelas, setas e ponteiras de aço, levando ao rubro a tensão das cordas de fibra. Este é momento, do perigo máximo, da exposição absurda às intempéries do ferro alheio, do demorado ritual, este é o tempo do carrasco. Depois um grito e o arc-en-ciel pleno de silvos alcança o zénite. Por um instante supremo tudo se detém no êxtase contemplativo daquela cortina de aço. Eis que desce agora, matilha uivante, no mergulho final tão belo como a morte.


Mas a Morte não chega.


É necessário que arranque olhos às suas órbitas, que perfure e, com o estrondo dos sinos, atravesse couraças em busca do precioso líquido, bombeado por corações enlouquecidos. Uma imensa representação da vida, maior do que a vida, para lá do cair do pano da noite; nesse palco que muitos elegeram como última morada.


E a morte não chega.


Enterrado sob os cadáveres, espero-a. São visões magnificas de pilhas humanas, vermelho e prata brilhando à luz das estrelas; dos gritos das raposas e dos abutres. Das minhas memórias desfilando a tropel, distorcidas de tamanhos insuspeitados, do pouco que afinal eram, do quanto nunca lhes reconheci. A candura dos amores antigos - novíssimos ódios, e a estirpe dos meus falcões adormecidos, sobre o meu ventre aberto.
Que fui eu afinal, a mais do que as vidas que fiz e que ceifei, castelos que erigi e arrasei, de quanto desejei e se cumpriu, de tudo em que excedi o meu desejo.
Dos sulcos profundos nas estradas, das marcas nos corpos que trilhei, dos filhos que tive e não amei, do teu coração partido, sem remédio.
Mas o fim vem a passo certo e tudo o que fui não mais será, dando-me esse descanso porque anseio.


Não. A Morte não chega.






quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Túmulos

Hoje, apenas uma escrita sonora dos mesmos "Túmulos" de ontem.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Túmulos

Lua e mercúrio num céu de chumbo.
Depois, florestas de galhos retorcidos nos campos de batalha.
Ervas oceânicas, ondulando de insectos e, em baixo, xistos esparsos de costelas.
A terra húmida, de apertada cota de malha férrea - e vermes, de dedos sem as suas mãos.
E mais terra arfando do peso do mundo e dos carvalhos; e naus que navegam imóveis nas suas entranhas, sem vento ou vela.
Um sepulcro, de ar rarefeito com o óxido dos séculos.
Os teus olhos glaucos, fixos na escuridão do silêncio eterno.

Mas renasceste longe, para lá das areias e do sol ocre dos desertos.
Do tempo de além-túmulo chega-te apenas um sopro agudo de uma indizível tristeza: aquela de um último cruzado, elmo chispando com um brilho de alma ausente, para sempre montando guarda ao teu corpo inerte.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Narthex

Entre o altar e a loucura, entre os homens e a peste. 
Negaram-te a passagem, mas ainda assim te desejaram perto. Fecharam-te a porta mas por ti escolheram passar para a alcançar. 
Estes são os tempos do pão, da expiação e do baptismo. Da eterna lembrança do que és, dos seios ligados e escondidos sob as túnicas grosseiras, das almas aradas como os campos. 
Há sempre uma estrada. Muitos dias de montada nos trilhos de Santiago. Rios púrpura de vinho e sangue. In taberna quando sumus non curamus quid sit humus.
Mas todos os caminhos te levam à Catedral.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Casamento Real

Quando 
contra tudo, contra todos, contra todo o bom senso, contra ti próprio, contra o teu desejo, contra a paixão, contra a segurança e contra a incerteza, contra o próprio amor, ainda assim amas.

domingo, 12 de outubro de 2008

Nosferatu

Verde é a noite; e o musgo, o cetim, a pele: o órgão vivo das trevas densas e estáticas que paralisam todos os sons. Morrem à nascença, nas gargantas, na anestesia dos dentes afiados.
Verde é o sangue, vermelho nos sonhos da noite eterna, de alcovas lacradas, de sedas, de rendas brancas.
Morre também o sol nas fronteiras do castelo que a vista alcança, tingindo de púrpura a pedra húmida das ameias estreitas.
Não entres. Entra, vem. O chão abre-se sob os teus pés movidos de vontade própria. O caminha é seguro, vem a mim.
O frio sobrenatural. Aqui, no conforto dos meus braços.

Num poço seco, na eternidade onde o nunca e o sempre se confundem, exalas então o último sopro da alma a que não mais chamarás tua.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Orphélie

Com a última batida das Laudas no campanário, o rio pôs-se em movimento. A superfície lisa das águas verdes recortava o seu corpo emerso como uma ilha e as suas faces lívidas, como um vulcão.
De braços apenas abertos, Orphélie navegou imperturbável no seu sono, os pés unidos, as palmas das mãos descrevendo um ângulo perfeito de quarenta e sete graus, os longos cabelos ruivos deixando um rasto brilhante de opalas à luz da manhã.
Da margem esquerda, desde sempre presa da noite mais sinistra, chegava-lhe o som de galhos partidos e o arfar intenso de todas as bestas que a acompanhavam numa cadência demoníaca, sucumbido umas às garras das outras, mas todas com os olhos de sangue cravados no seu coração.
Da outra margem, eternamente presa da noite mais bela, ecoava um bater veloz e frágil de cascos de um cavalo negro e negros eram os seus olhos, enormes.
A baixa da maré levou-lhe as águas deixando Orphélie presa da curva do rio e tudo se aquietou em seu redor. Sentou-se, as suas pálpebras cerradas, descendo as mãos sobre os cabelos e urdindo uma trança perfeita. 
Depois, num passo ligeiro e flutuante, desapareceu nos campos de trigo ensolarados.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Ábaco

Deslizam sob as pontas dos dedos gelados mas secos como papel, as contas do ábaco. O seu som confunde-se com o das justas distantes. Mas infinitamente mais letal, como os pregos do maço, as setas da besta ou os vapores do inferno, repousa o ábaco entre as madeiras dos longos tampos da mesa e das traves do tecto, no silêncio de veludo dos salões.
E, contudo, são tempos de certa justiça: do cálculo pendem cabeças e destinos, de camponeses, usurários, reis e clero.
E na falha deste sobra sempre a mão cortada do amanuense.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Campanário

Correndo sobre as searas como se algas fundo nos Mares, mas com a luz; cobrindo as distâncias com o canto cíclico e profundo das baleias, mas sem a angústia. Sólido como o voo dos falcões no céu e do céu recortado como os relógios de sol. 
Sem quebrar os silêncios, do sono leve acorda e varre a terra de hora a hora.
Impaciente, espero-o em vigília do meu túmulo e nunca consegui - ou quis - evitar o sobressalto.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Catherine Wheel

Unclean.
Do topo do morro, à distância de sete diâmetros, desembaraçou-se a besta das mãos do carrasco e fez tremer a terra sob os teus membros presos, na distenção máxima dos músculos. Os seus dentes cravaram-se na terra negra, um após o outro, num encurtar de distância lento e surdo, num crescendo de trovões anunciando os teus ossos estilhaçados.
Há muito que o teu corpo se fez jaula em vez de templo e foi chegado o momento de levantar âncora, de libertar-te das amarras dos tendões.
Sete diâmetros cumpridos e o teu grito último definhou rouco num manto de terror.
Jaz agora sobre a roda, o sudário descarnado, oco, do que foste.

domingo, 5 de outubro de 2008

A Fonte

Aquilo que sei, meu filho, ser-te-á indiferente e pelo teu próprio filho será esquecido. O esquecimento é como um sono intemporal do qual, por Ventura, se acorda. Aquele que dele acordar pelos outros será apontado e, se sobreviver, terá filhos que se assemelharão à copa das árvores frondosas. À sombra destas viverão criaturas de várias pequenas estaturas, e que disseminarão o senso comum sem contudo serem tocadas pelo seu fruto. Aqueles que comerem as maçãs sem terem fome, para si reclamarão toda a sabedoria como descoberta quando, na verdade, encontraram a mesa já posta.

Graal

Antes o ouro do que o jade. Antes o cálice do que o ouro. Antes o vinho do que o cálice. Antes a sede do que o vinho. Antes a sede.

sábado, 4 de outubro de 2008

Constelações

FIRMAMENTO
No léxico vivem ainda todas as eras.
UM RIO
Prenhe de sangue escarlate, hoje mesmo, esvai-se a pena em grafias de sedas e brocados, linhos e outros mantos mais grosseiros.
TEAR
Há sempre um codex por nascer, do nobre, do ideal, do artesão, do veado e da côdea de pão.
DAS BRUMAS
O mais sólido torreão emerge de águas lamacentas e as palavras tomam-se do ar quente e ascendente nas colinas, esperando apenas que as sigas.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Ponte em Ruínas

Onde foi que nos perdemos. Quando foi que olhando para trás e vendo o caminho, não mais o reconhecemos; que os laços com o Mundo se quebraram deixando-o cativo de vaguear por todas as dimensões enquanto nós, livremente, nos encarcerámos no trilho do futuro, que vai do abismo ao vácuo.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Transepto

Aqui, estendido sobre estas pedras do cruzeiro, tomado de vertigem.
Aqui, sob o encastre dos pontos cardeais, braços abertos com o Norte e o Sul na palma das mãos, este é o eixo mais curto. Em direcção ao oriente se faz o outro caminho, através do meu coração pisado como avenidas.
E no entanto é bem ténue esta força que me prende às lages do chão e sinto o alto como um poço.
Aqui onde todos os tempos se cruzam, como o brilho colorido e difuso dos harmónicos; e que contudo empalidecem perante o silêncio sombrio, sepulcral, do tempo antes e depois dos tempos, do sempre, da fundamental.
Inaudível mas presente, estremecem ainda estas paredes com reflexões infímas do som dos antigos martelos e bigornas, das vozes da Rainha e do Mestre-de-Obras.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Prologue

Sob estas pedras, cobertas pelo pó do silêncio dos séculos, corre um rio exangue. Secou, às brasas do dia dezanove, corria o mês de Julho de mil quatrocentos e quinze.