segunda-feira, 3 de novembro de 2008

A Légua

Silhueta, mais negra que a noite escura, imóvel sob a chuva que teima em lavar a terra dos terrores que se fazem aos caminhos só depois da hora de Completas. Imóvel, no seu cavalo da côr do breu das luas novas, a espada pendendo na impotência do fluir dos demónios. Cabeça baixa, ambos, cavalo e cavaleiro. Trespassado dos risos histéricos, dos lamentos e das agonias, numa transparência que não sem dôr, numa dôr inatingível senão pelos caminhos da verdade, das selvas amazónicas do Sêr, das florestas virgens da Alma, essa viagem.
Naquele instante, dos olhos esfumados das memórias e da articulada textura da chuva caindo sobre a sela, a existência era a maior das penas. Instantes como aquele, em que o Universo se cristaliza num acontecimento singular de proporções incomensuráveis, acontecem apenas uma vez - pois que não duas ou três - na vida de um homem. Cristo teve os seus, mas Ele Todo era esse momento, essa transcendência em que o Homem indefeso, apenas sendo, não conhece fronteira; em que a consciência da total insuficiência é o maior e mais sólido dos templos.
Mas isso não o sabia ele, na altura. Soubera-o antes e decerto o lembraria depois, se depois houvesse. Pois que a vida corria gota a gota, como a chuva. Mas sem que o adivinhasse, uma lágrima sua, vertida sobre a terra, ensanguentaria todos os oceanos e mares, todos os ribeiros e charcos, todas as Lágrimas.
E no entanto era aquele o caminho, que se estendia perante si, simples como um regadio.
Uma légua à sua frente, uma estalagem. Um pão duro e uma caneca da boa cerveja amarga, do lúpulo. A lareira, devolvendo aos olhos o seu brilho. Um calor.
Uma escada de grossas traves enegrecidas, uma porta e uma cama sem dossel.
Uma janela, vidros sujos dos matizes das cores dos prados. A sombra a dar lugar ao dia, descobrindo a estrada do seu manto Nocturno.
Um cheiro inebriante de alfazemas, como a Vida.

8 comentários:

Fata Morgana disse...

Uma lágrima redonda
apenas uma
redonda
não mais.

Tão simples, só sal e mágoa. Tão poderosa.

Aqui a deixo.

*

Fata Morgana disse...

"numa" dor, em vez de "num" dor; e "do" Ser, em vez de "dos" Ser.
;)

Escreves ao correr da pena e isso nota-se na beleza da escrita e também porque, onde não há erros, as gralhas te escapam!

Gosto de como ignoras todos os acordos ortográficos, por vezes escreves como o fariam os teus avós... É mais bonito, muito mais bonito.

Gotik Raal disse...

Olá Morgana,

Uma bela lágrima, essa que aqui deixaste. Daquelas que tingem oceanos de púrpura. E que, porventura, nunca secam, do sál e da mágoa.

Quanto aos acordos ortográficos não sei que "sejam". Mas se falas do meu Sêr e Dôr Nocturno, por exemplo, adoro esses adornos, sim.
Quanto ao resto, li e reli e ainda assim me escapou!

Um beijo,
Gotik Raal

Fata Morgana disse...

Gotik,

Oh eu queria que secassem.

Referia-me ao Dôr e Sêr, sim, e no Nocturno nem reparei porque também escrevo sempre assim e nunca escreverei noturno.

O resto foi "estrabismo" meu :)

*

R. disse...

Incrível,chega-se a sentir o odor da (tua) atmosfera :)*

Jo disse...

Está-se bem aqui, no escuro da tua Catedral. Fica-se a pensar nas nossas Catedrais, como se as víssemos pela primeira vez "de fora".
Nem sei se faz algum sentido o que disse, mas foi o que me ocorreu de imediato.

Beijo*

Vítor Mácula disse...

Estrita e puramente ser, nada mais; para lá de todas as determinações; vazio em que o todo se vê, e toda a ínfima parte; fundo sentido da incarnação.

Despreendimento total que tudo toca, por dentro e por fora.

E a abertura maior: mais fundo e além que o ser, o divino ;)

abraço, Gotik

Gotik Raal disse...

Morgana,
O nosso querer, é uma das mais poderosas forças da Natureza e do Universo - quando, no seu desejo, não contraria a essência do todo, mais amplo.
Esse querer traz já em si a materialização do desejo; tão físico como a imagem de uma árvore que vemos das altas janelas dos nossos Castelos.

Beijo, Morgana


Vertigo,
Uma mudança bem-vinda, então, Esse apelo a outros sentidos. De uma importância tão veemente quanto insuspeitada... como muito bem o sabia um certo Jean-Baptiste Grenouille que um certo dia, num futuro longínquo, passou pelos salões da Katedraal...!

Beijo, Vertigo

Mariazinha,
Esse ocorrer de imediato que referes, não é alheio a esta Catedral. Quando começo um texto e o carrego comigo por algum tempo, o porquê raramente é presente. E de repente, num momento de distracção aparece escrito nestas folhas grossas. É a minha caligrafia. É o sentir de Gotik Raal. Mas ainda assim prevaleçe o espanto de o ter escrito, eu. Não são imodéstias, mas antes aquilo que tu também referiste, como... "de fora".

Um beijo, Luna

Vítor Mácula,
Antes do que mero reordenar de palavras, a tua intervenção reforça aquilo que intui quando visitei a tua Casa. Uma afinidade, nesse espaço mais amplo. Recorro de novo a um dos meus textos favoritos, o Tao Te Ching, em duas traduções diferentes do mesmo texto (parte do "poema" de abertura) e que tão bem se aplicam, também, a esse divino que referes:
"Even the finest teaching is not the Tao itself.
Even the finest name is insufficient to define it.
Without words, the Tao can be experienced,
and without a name, it can be known."
Trad. Stan Rosenthal
"The Tao that can be trodden is not the enduring and unchanging Tao.
The name that can be named is not the enduring and unchanging name.
(Conceived of as) having no name, it is the Originator of heaven and earth:
(conceived of as) having a name, it is the Mother of all things."
Trad. James Legge

Abraço também, Vítor
Gotik Raal