sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Nocturno

Com o fresco da manhã a dor aquietou-se.
As feridas sofridas na noite tomam-se de uma atenção ímpar; os tímpanos perfurados, os dentes rotos. Os ossos escanados e as unhas que crescem tortas, furando as massas do crânio. Ainda que, e apesar dos suores dos corpos - pois que a noite é inimiga de todas as anatomias.
No entanto ali era só eu, naquela noite em que sofri os horrores dos meus sentidos. Entregue a mim próprio não encontrei melhor carrasco.
Infligi-me as maiores torturas, as mais sangrentas imagens, os sons mais lancinantes emergindo das minhas entranhas abafadas no resguardo do linho dos lençóis e do peso das mantas.
Nessa noite, todos os sonos soltos corriam, vorazes, as alas do castelo. E contudo deixaram o arco da minha câmara envolto nas sombras do silêncio. A vigília nocturna é coisa da maior solidão.
E a solidão é isso. A ausência da alma que deixa entregue ao corpo frágil a consciência. Aquele instante singular em que nos vemos de costas.
Ausente, e num raro vislumbre do homem, filho do homem, apenas a dor excruciante impediu a ruína do meu corpo.
Mas com o fresco da manhã a dor aquietou-se, e por fim adormeci.

7 comentários:

bat_thrash disse...

As dores sempre encontram certo bálsamo ao primeiro raio de sol que ilumina e distrai a vida com luz e o movimento da massa, entretanto,quando a noite se impõe a dor realça-se pois a escuridão é a antítese da máscara.

Bat kiss.

bat_thrash disse...

No sentido literal isto também se aplica, pois quando fico doente tenho medo das noites pois é só o sol ir-se embora que o estado se agrava.(costumo ter amigdalite)

Gotik Raal disse...

Bat Trash,

Intuiste bem. Este "Nocturno" fala de ambas as noites das tuas respostas, a literal e a resposta poética, pois que nenhuma faz sentido sem a outra. Já tive noites destas - Um tímpano ferido foi porventura a pior... e gostei dessa candura, da tua segunda resposta. Tenho para mim que a verdadeira poesia se faz de coisas simples, mas, e sobretudo, se faz sobre alguma coisa.

>E, como dizia Fernando Pessoa

"O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca..."


Beijo,
Gotik

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Nomeio eu isso de pesadelo, tormento que nos corrói quando o veludo negro cobre as almas. Não lhe interessa se as vítimas dormem ou estão despertas, observando os seus movimentos esguios e imprecisos. Alimenta-se delas e dos desvarios temíveis de que as acomete.
Não parece ser nada simpático...

Mas bem, o texto está muito bom, uma descrição realista proveniente do surreal ^^

Um beijo!

R. disse...

a solidão de manhã é ouro.à tarde prata,

à noite mata.


E este texto,mais uma vez,veio ao encontro de tanto e de tudo ao que me pulsa cá dentro.

Desta vez,uma vénia.

DarkViolet disse...

Adormecer na solidão pode ser um terror para a Alma ou um sossego silêncio que pode fazer ecoar as sombras de um destino com uma dor diferente

Gotik Raal disse...

Leto,

Gostei dessa entidade, Veludo Negro, que habita e É a própria Noite, impiedosa! Há algo de orgânico na noite, sim.

Um beijo,

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Vertigo,

Habitas a noite da solidão, e solidão da noite mora também em ti, então. mas não esqueças as manhãs de sempre, e as mais noites. Num interminável Samsara ... ou Ouroboros, que são afinal o perfeito equilíbrio do mundo.

Um beijo, e uma vénia também!

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Dark Violet,

Gostei dessa imagem. Mas trocava-lhe a Alma pela Razão, ou pela sua noite, a Demência. Na Alma julgo que o Sol nunca se põe. E o que nunca começa nunca acaba...

Abraço,
Gotik Raal