quinta-feira, 28 de maio de 2009

Regresso


Avistei-o quando alcancei o topo da colina, ao longe. Para lá da zona do casario com os telhados baixos da cor da terra no sopé do monte. E no alto o meu velho castelo em ruínas.
Um toque de leve na espádua do cavalo e assim fomos, de regresso àquele passado.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

A Escória



Todas as bestas do mundo. E os impérios dos sentidos.
De um único golpe, a lei da espada é de todas a mais simples.

De que serve crescer, padecer das dores da alma e sobreviver às horas intermináveis de instrução, à asfixia no supérfluo; saber ocultar todos os odores e diligentemente esconder os fluidos do corpo.
De que serve cuidar de roer o lixo das unhas e poder banhar os longos cabelos negros ao preço de três colheitas por unguento.
É de facto ostentação: o belo sorriso que nunca rangeu a perda de um braço.
Ao inferno, toda esta escória laboriosa.

No campo de batalha, a pé e arrastando o peso do ferro que me cobre, todas os códigos me parecem curtos. Mas não a espada na pura expressão do coração.

Pois de que serve a vida a quem teme a morte.
E então cuspo três dentes de ouro no sangue dos pulmões.

domingo, 24 de maio de 2009

Túmulos. V. Nankyoku Monogatari


Tínhamos pela frente aqueles dois meses de Inverno. Dias intermináveis no frio e implacáveis no vento ou - na ausência deste - no rigor, da cegueira das neves mais do que das noites; ainda que o sol brilhasse sempre, a coberto do horizonte e dos glaciares.
Não há nada mais belo neste mundo do que a solidão nos confins da Terra quando todos os elementos conspiram contra a permanência; mas que ainda assim nos concedem respeito por nos termos escusado a partir. Eu sei que isto parece vago e estranho. Mas não o era para nós, cães, que nascêramos sob as luzes da Aurora Austral. O mundo dos nossos olhos guardava em si mesmo todas as respostas transcendentais.
Mas é precisamente quando a existência se torna no único alimento que todas as perguntas se extinguem. Aqui, nos gelos eternos do sul, o tempo não interessa. Aquilo que diz que passado é passado, presente ou futuro, não tem qualquer importância.
Tenho as patas feridas de sangue. Tenho os caninos feridos de fome. Cobre-me o pelo o eterno branco e o azul; tenho comigo o gelo e os mares que se estendem negros, ao longo das fendas abertas e dos glaciares.
Eu sigo o meu irmão por toda a terra: ele, que se libertou da morte certa antes de todos.
Dêem-me a morte, mas a morte incerta. Seja a fome no gelo flutuante, seja o vento impiedoso ou o abrigo derradeiro na carcaça das baleias. Sol ou noite tanto faz, pois se o prazer ou a dor são agora meras palavras.
Todos os homens partiram; raça maldita, mesmo que sendo o melhor amigo.
E contudo este é o mais belo testemunho da existência. O branco azul do gelo, o negro mar e o vento, os dentes, as garras e os ossos; meus, das focas e das baleias.
Nasci e cresci cativo das minhas forças.
E então, enquanto aguardava a morte e a Primavera, cedi a esta última fraqueza: lembrei-me de nós - tu e eu - quando este mundo ao Sul que hoje me recebe vivia ainda só das cores dos menestréis e das especiarias; nos pergaminhos.
Eis que sou morto, e estou vivo.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

A Fonte



Ser o fosso
e ser a ponte.
Ser o castelo na ilha,
e ser o poço
sendo a fonte.

Ser o ser e o não ser.
Ser mais do que todo o querer,
não querendo mais
do que o tempo de dizer
Eu.
Essa palavra maior,
desde que infinitamente menor
que aquela outra que a acolhe;
Om. O som do sopro de
DEus.


(Em resposta aos comentários de Leto of the Crows e Vitor Mácula)

Pintura de Jan van Eyck

quarta-feira, 20 de maio de 2009

O Medo



O dia foi de sombras e o vento soprou mais denso nas margens do caminho, encoberto pela copa das árvores. Nenhuma armadura me teria trazido o descanso, hoje, e contudo o céu era de um azul sem mácula. Dias assim são de enxofre, venenosos.

Onde estão estes muros que me cercam,
para que os derrube;
ou as grades da cela que te encerra,
para que as arranque.
Pois nada no meu peito cede aos terrores do corpo.

Ser cego,
mas sempre podendo ver.
Ser forte,
e contudo perecer.

Mas sempre o sangue,
correndo célere nas veias.

Com a espada rasguei uma cruz,
no coração.
e atirei-o aos quatro ventos,
por toda a parte.

Ser vivo,
e ainda assim
nunca morrer.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A Ponte do Céu



O meu ser não é daqui,
pois se neste reino tudo os meus olhos alcançam.
E o meu corpo solto esvai-se,
líquido na ânsia do espaço.

Vida ou morte, o meu desejo. Tanto faz
desde que a vastidão da terra me consuma.

Talvez lá, onde há um mundo para além das nuvens,
feito da mesma luz dos dias; do mesmo ar, do pó da terra.
Mas onde o horizonte eterno é maior
do que o calor das fogueiras.

Foi lá que te vi, quando dormia,
antes de por fim reconhecer
o teu rosto, o meu castelo.

domingo, 10 de maio de 2009

As Irmãs

Eram como dois pequenos demónios. Na verdade apenas uma carapaça vazia. Um dragão anão de duas cabeças, as irmãs; de uma semelhança inacreditável, apesar de todo o seu esforço. E contudo as diferenças eram ínfimas, apesar do estrebucho e do ruído enjoativo e ensurdecedor que provocavam, de lava morna, à sua volta.
Deslocavam-se ao nível do ânus do mundo. E assim não perdoavam ao mundo o seu próprio tamanho.
No entanto há algo de verdadeiramente terrível, nesse inverter de dimensões em que os seres crescem de forma transversal e assim se condenam a um rastejar eterno. De uma forma transversal. É que da terra nascem as raízes das árvores, se erguem os pilares das catedrais, e todo o esforço de vida se faz no sentido do céu.
Assim as duas irmãs, como todas as outras cobras ou restos de pele podre de escamas abandonada, tinham aquela visão distorcida dos vidros de aumento, em que tudo se agiganta no centro e perde a nitidez e o sentido nos círculos periféricos. Mas por isso mesmo se esqueciam de que os centros vivem das periferias. Isto o esqueciam apenas no espírito pois que os seus corpos se alimentavam de tudo o que de viçoso crescia à sua volta.

Era um dragão ridículo de duas cabeças, as irmãs, sem entranhas, apenas feito do vazio do frio, do tempo que nunca conheceu as estações. Um frio sem sentido, um vazio sem espaço para crescer. E contudo existiam, proliferando no alcance do seu embuste, as irmãs.

E eu mingava para as fazer crescer, hirto, no nojo de pisar a bosta do seu ser a cada passo.