
Tínhamos pela frente aqueles dois meses de Inverno. Dias intermináveis no frio e implacáveis no vento ou - na ausência deste - no rigor, da cegueira das neves mais do que das noites; ainda que o sol brilhasse sempre, a coberto do horizonte e dos glaciares.
Não há nada mais belo neste mundo do que a solidão nos confins da Terra quando todos os elementos conspiram contra a permanência; mas que ainda assim nos concedem respeito por nos termos escusado a partir. Eu sei que isto parece vago e estranho. Mas não o era para nós, cães, que nascêramos sob as luzes da Aurora Austral. O mundo dos nossos olhos guardava em si mesmo todas as respostas transcendentais.
Mas é precisamente quando a existência se torna no único alimento que todas as perguntas se extinguem. Aqui, nos gelos eternos do sul, o tempo não interessa. Aquilo que diz que passado é passado, presente ou futuro, não tem qualquer importância.
Tenho as patas feridas de sangue. Tenho os caninos feridos de fome. Cobre-me o pelo o eterno branco e o azul; tenho comigo o gelo e os mares que se estendem negros, ao longo das fendas abertas e dos glaciares.
Eu sigo o meu irmão por toda a terra: ele, que se libertou da morte certa antes de todos.
Dêem-me a morte, mas a morte incerta. Seja a fome no gelo flutuante, seja o vento impiedoso ou o abrigo derradeiro na carcaça das baleias. Sol ou noite tanto faz, pois se o prazer ou a dor são agora meras palavras.
Todos os homens partiram; raça maldita, mesmo que sendo o melhor amigo.
E contudo este é o mais belo testemunho da existência. O branco azul do gelo, o negro mar e o vento, os dentes, as garras e os ossos; meus, das focas e das baleias.
Nasci e cresci cativo das minhas forças.
E então, enquanto aguardava a morte e a Primavera, cedi a esta última fraqueza: lembrei-me de nós - tu e eu - quando este mundo ao Sul que hoje me recebe vivia ainda só das cores dos menestréis e das especiarias; nos pergaminhos.
Eis que sou morto, e estou vivo.