O sangue agrilhoado na cabeça, nos ouvidos. Os olhos desvairados procurando, por entre as traves do tecto, um fenda qualquer que liberte a alma. E o sabor metálico das pedradas nas têmporas, que escavam sem descanso as palhas velhas da cama. E o corpo a queimar de vulcões e lava de pús.
A porta abre-se num rilhar de dentes e o médico entra, espectral, numa procissão de passos curtos, mãos insensíveis nas mangas, envoltas naquela pele de cetim negro que lhe cobre todo o corpo reflectindo, imaculada, a imundície dos aposentos.
Há algum tempo, já, que os ratos partiram. Naquele dia em que a Lua, pousada na linha dos telhados e das muralhas, foi maior do que o Sol. Naquela noite em que as cidades transbordaram e os cães danados saíram das sarjetas, num galopar infernal de unhas estilhaçadas nas pedras das ruas estreitas.
Exibindo como troféus as pulgas e as carraças aprisionadas nos excrementos secos que cobriam o seu pêlo branco, tomaram todas as casas, todos os vãos de escadas, todas as fossas. E as línguas bifurcadas e pendentes de um rosa pálido-morte, marcaram e para si reclamaram de todos os vivos, dois em cada três.
E o médico, olhos agudos no crânio fóssil das pinturas de Mestre Bosch, desceu sobre o enfermo como uma cegonha de água. E o terror. À sua visão o sangue correu mais célere, gotejando em cada poro daquela pele de bubos, outrora lisa. E como uma cegonha se ergueu, no único juízo daqueles dias de condenados, e sem proferir palavra, disse:
"Larga o corpo. Vai-te."
sexta-feira, 7 de novembro de 2008
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2 comentários:
Quase senti o mal estar do pobre condenado revibrar-me pelo corpo.
A Peste foi uma baforada negra que varreu toda a Europa ocidental.
Um texto lindíssimo ^^
Um abraço!
Leto of the Crows
"Varreu" é um termo adequado... O número de mortos escapa a qualquer tentativa de compreensão.
Obrigado e um abraço, também!
Gotik Raal
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