Era a hora de Matinas.
Surgidos da copa das árvores a oriente, cinco anjos entraram no campo de batalha formando uma cruz. As suas vestes eram da côr do céu da noite em lua cheia, e das suas asas, dos seus cabelos longos, pendiam os reflexos azul-hematita dos corvos negros. Imóveis, as palmas das mãos unidas sob o queixo, as faces de uma palidez e serenidade inabaláveis, varriam os céus. E o seu rasto era de fogo.
Do nada, da sombra das árvores a Norte, surgiu um cavaleiro e seu cavalo, brancos da côr dos gêlos que cobrem os reinos mais longínquos que a memória alcança, mas onde homem algum jamais ousou pisar. Foices de prata pendiam dos arreiros escarlate, e um vermelho-sangue tingia lentamente as patas em estilete da montada. Do seu galope largo não sobrava qualquer som. E o seu rasto era de cinzas.
Soldados moribundos, apenas aqueles a quem os olhos haviam sido poupados e cujo sangue corria ainda quente nas veias, assistiram ao embate; uma dança errática plena de ângulos rectos, de quadrados brancos e pretos, um xadrez feroz e protector, pleno na certeza de cada lançe: três homens para Sul, dois para Oeste. Vens comigo.
Corpo algum em cinzas mais se incendiaria e também nenhum em chamas se extinguiu. O clamar das almas era definitivo, sem resposta e sem regresso.
Antecipei aquele momento por um breve instante, em que me vi na mira dos exércitos. E desejei-os ambos, com partes distintas do meu querer. Mas quão longe era a luxúria de outros tempos, presa de um sêr breve que já não era, também, o meu.
Alcançou-me primeiro a Morte. O seu elmo e a viseira do cavalo guardavam órbitas vazias. Fixaram-me os olhos sem me vêr e fui poupado, a Morte é cega. Às cinzas perdi um braço e deixei-o ir.
Et si dextera manus tua scandalizat te abscide eam et proice abs te expedit tibi ut pereat unum membrorum tuorum quam totum corpus tuum eat in gehennam.
Depois vieram os anjos, cinco eles vieram formando uma cruz. Seguia-os o seu séquito de almas douradas. Julguei-me salvo e olhei-os, eu. Mas só pude ver a minha tristeza reflectida num canto onírico de um olhar, do anjo ao centro, no cruzeiro.
E depois, com o primeiro raio de luz, tudo se aquietou naquele manto de cinza e fogo.
Havia sido desprezado pelo Céu e pelo Inferno.
Mas que terra é esta que me acolhe agora, com sombras que não conheço e sóis que nunca antes vi? Estou sozinho. Não é a quietude da morte que me assalta, mas a certeza neste céu da boca de criatura nova e solitária, destes muros altos conquanto invisíveis que ma amparam, desta sede de sangue que enlouquece; como se por ele pudesse negar esta figura ímpar que é a minha, perder-me no sabor de uma maçã, ser tarde, ter sono e outra vez poder dormir.
Levanto-me agora e ergo da lama esta armadura; ostenta a carne dilacerada em cada cravo, e sigo assim para onde o Sol se punha.
Nesta solidão imensa choram-me os cantos da boca lágrimas de sangue. Os olhos, esses, retêm nas pálpebras a têmpera do teu rosto.
(Latim: Mateus 5:30)
terça-feira, 21 de outubro de 2008
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9 comentários:
Lê-se de um só fôlego, este confronto. Vi os anjos negros, mas não ousei olhar nos olhos do cavaleiro branco.
Quem retém nas pálpebras a têmpera de um rosto não está verdadeiramente sozinho...
beijo*
Mariazinha,
Acho que a "conclusão" do texto pode ser essa, sim. Ou então, pelo contrário, esse o último reduto reforça a solidão. Não posso falar muito sobre estes textos... Sei quais são os meus enredos, mas sei que a forma como os escrevo facilmente leva a outras paragens, e isso também me agrada...
Beijo,
Gotik Raal
O derradeiro confronto entre opostos deixa-nos no impasse da escolha cinza ou rubra. E quando não nos encaixamos no céu nem no inferno?
Blood Kisses
Uma escuridão fatal que traz a promessa de uma luz também fatal.a 'luta' será sempre o caminho a seguir..
Um beijo,gotik*
Blood Tears,
É a pergunta do texto, efectivamente. E algures lá, para o fim, está a resposta. Uma resposta algo romântica no conceito, propositadamente pouco clara, mas pensei nela quando escrevi .-)
Vertigo,
É um bom ponto de vista, o teu. A fatalidade nas trevas mas também na luz. Ou na ausência de ambas, digo eu... Haja sempre um caminho a seguir!
Beijos, e obrigado pelas leituras
Gotik Raal
Perdido entre dois extremos polares de luz e trevas, desfalece-se no abismo profundo que existe entre eles.
Então olha-se para os altos e a saída parece longínqua e de infitina e árdua subida!
Porém, algo mais existe para descobrir em tais recônditos, onde se caiu.
Leitura fantástica esta que aqui se apresenta ^^
Um abraço*
Leto of the Crows,
Gostei do plano vertical do teu comentário, da subida e descida entre os polos, do poço implícito.
Obrigado pela visita e pelo Caminho das Fortalezas.
Abraço, também
Gotik Raal
É um texto com infinitas leituras, apocalíptico. A mitologia cristã continua fértil de símbolos insondáveis.
Lorde of Erewhon,
Disseste muito com pouco, e fico contente por te ter inspirado esse comentário. Durante algum tempo procurei essa riqueza noutras longitudes mas depois fui apenas outro filho pródigo...
Um Abraço Lusitano, então
Gotik Raal
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