Silhueta, mais negra que a noite escura, imóvel sob a chuva que teima em lavar a terra dos terrores que se fazem aos caminhos só depois da hora de Completas. Imóvel, no seu cavalo da côr do breu das luas novas, a espada pendendo na impotência do fluir dos demónios. Cabeça baixa, ambos, cavalo e cavaleiro. Trespassado dos risos histéricos, dos lamentos e das agonias, numa transparência que não sem dôr, numa dôr inatingível senão pelos caminhos da verdade, das selvas amazónicas do Sêr, das florestas virgens da Alma, essa viagem.
Naquele instante, dos olhos esfumados das memórias e da articulada textura da chuva caindo sobre a sela, a existência era a maior das penas. Instantes como aquele, em que o Universo se cristaliza num acontecimento singular de proporções incomensuráveis, acontecem apenas uma vez - pois que não duas ou três - na vida de um homem. Cristo teve os seus, mas Ele Todo era esse momento, essa transcendência em que o Homem indefeso, apenas sendo, não conhece fronteira; em que a consciência da total insuficiência é o maior e mais sólido dos templos.
Mas isso não o sabia ele, na altura. Soubera-o antes e decerto o lembraria depois, se depois houvesse. Pois que a vida corria gota a gota, como a chuva. Mas sem que o adivinhasse, uma lágrima sua, vertida sobre a terra, ensanguentaria todos os oceanos e mares, todos os ribeiros e charcos, todas as Lágrimas.
E no entanto era aquele o caminho, que se estendia perante si, simples como um regadio.
Uma légua à sua frente, uma estalagem. Um pão duro e uma caneca da boa cerveja amarga, do lúpulo. A lareira, devolvendo aos olhos o seu brilho. Um calor.
Uma escada de grossas traves enegrecidas, uma porta e uma cama sem dossel.
Uma janela, vidros sujos dos matizes das cores dos prados. A sombra a dar lugar ao dia, descobrindo a estrada do seu manto Nocturno.
Um cheiro inebriante de alfazemas, como a Vida.