terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Túmulos. IV.

Partimos para Leste, pelas infindáveis curvas brancas do rio; mas cortar a direito, por uma vez na vida, era impossível. Em vez disso o caminho afundou-se-nos nas veias, pleno de paciências, de silêncios, da certeza dos tamanhos relativos - do mundo e dos nossos.
Por fim o rio esvaiu-se nas planícies agrestes de vegetação rasteira e então virámos a Norte e a Leste. O percurso era feito de todos os trilhos pequenos das aldeias, do tempo em que éramos poucos sobre a terra e, de facto, naquele momento fomos únicos. Foi toda nossa a pena, a dor e os céus das nuvens mais altas do que a vista alcança.
Passaram duas luas, antes que finalmente tomássemos o caminho do Sul e do Leste - mas hoje, ao pertencer a estes muros de pedra que me abraçam, não me lembro de quantos dias tinham; apenas recordo aquele Ser branco no céu, duas noites a fio, das sombras de cinzas suaves e dum recorte perfeito suspenso dos confins, do negro.
E depois foram mais curvas, mais rio, e quatro cumes de morte - apenas conquistados por aqueles que já foram deste mundo, e regressaram para de novo partir. Subir para morrer, e descer para de novo negar a vida.
Vieram os campos, de pós sujos, dos minérios; sítios que a Criação não logrou alcançar - tudo cinzas, ferros magnéticos. E os rios transversais - mas desta vez o caminho era direito, e todas as curvas se esbatiam nos cantos dos olhos.

Por fim alcançámos os pântanos cobertos de um branco de gelo invernal. Mas não menos pântanos.
Naquele mundo esquecido os nossos sons morriam perto; a minha corrida metálica, da armadura descompassada pelas quinhentas léguas a fio, e o arfar dos cães das línguas enormes pendendo já sem saliva, as unhas rasgando as últimas placas de neve e sendo rasgadas por estas. Também eles davam sinais do fim, da inquietação do mundo imenso para lá daquele tempo, que acabaria nessa noite.

Chegaram as trevas. Sentei-me no meio da clareira das árvores nuas, o elmo entre os joelhos. Os cães partiram e regressaram com a lenha húmida nos dentes, e com esta marcaram um círculo à nossa volta. No centro, eu era a torre caída e eles, companheiros de uma vida, formaram as ruínas de uma muralha em meu redor.

E assim permanecemos, sem som, sem olhar, indo-se os sentidos sem regresso. Podia ouvir os lobos da noite, mas os cães inquietavam-se apenas com os silvos dos meus demónios. E por fim acendeu-se um tronco, como um diabo. E logo dois. E todo o círculo de fogo se ergueu na noite.

Naquele instante, dos nossos corpos fez-se a pedra e fez-se o gelo.
E ali permanece, ainda hoje, a escultura oca. Dos dias em que fomos o mundo todo.

14 comentários:

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Já tinha saudades dos teus tão profundos textos.
E este, que desse profundo se ergue, detém uma descrição magnífica ^^

Um Beijinho!

witch disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Peculi disse...

"...por fim acendeu-se um tronco, como um diabo. E logo dois. E todo o círculo de fogo se ergueu na noite."

Mt boa prosa/pensamento....

witch disse...

Dizias-me há pouco tempo ainda, que desejavas mais redonda a tua angulosa escrita... Pois venham mais destas angulosas, magníficas e redondas palavras nuas!
Belissimo sentir, o teu!
Uma viagem que me fez regressar ás minhas saudosas montanhas...


Kisss...

Gotik Raal disse...

Leto of the Crows,

Pois eu também tenho muita vontade de ler o que tens escrito e lá irei já a seguir. E soube-me bem, com o novo Ano, ver que ainda podes gostar destas palavras antigas.

Beijinhos!

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Peculi,

Gotik Raal agradece a visita, que retribui ao Portal Gótico.

Abraço!

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Witch,

Melhor ainda do que essas palavras, foi ler o entusiasmo!
E falo de sítios concretos, já agora. Sítios que já vivi, mas onde ainda não fui... se faz sentido. Sítios que me arrastam, de ânsias, como decerto, a ti, as tuas montanhas.

Um beijo, do

Gotik Raal

DarkViolet disse...

Existem múltiplos caminhos, trajectos descontínuos, retalhos de descobertas magníficas. O silêncio provoca mais cedo ou mais tarde um vazio de alucinações, onde por vezes nem as estátuas permanecem para recordar a memória de como as rudes das viagens foram puras. Percorridas as infinitas vastidões regressa-se sempre a um sítio...

Lady Alexiel disse...

Que viagem!

...e que deliciosa forma de recuperar deste forçado jejum das tuas palavras ;)

Um beijo*



PS: Li a tua resposta ao meu comentário, mais abaixo e sabes? Tocou-me particularmente o facto de, de entre todas as que fui criando, ser essa a imagem que guardas -o lago no meio da floresta-.
Esse é, para mim, um texto especial. Muito especial mesmo.

R. disse...

No fim,ainda me restou expirar.Quase morri (...)

Muito belo*****

Jo disse...

The rest is silence.*

Há muitos tipos de túmulo... Este é belo.

Beijo*



*William Shakespeare,
"Hamlet",
Act 5, scene 2

bat_thrash disse...

Ao ler o primeiro parágrafo de tua prosa lembrei-me desta frase: "eu sonho o mundo; logo, o mundo existe tal como eu o sonho.” ( Gaston Bachelard).

Há seres que do mundo da razão absoluta são apartados, por sonhar o real e vê-lo de outra forma.
fogo de chão
fogo no chão
chão de fogo



O mundo se faz novo nas centelhas e chispas; um universo inteiro, renovado de rubras estrelas, ilumina o noturno silêncio.
Leva tua vida como rio, veio perene entre os desfiladeiros da memória.

Leva tua vida como luz, sol sagrado que consome a relva seca e renasce tudo sempre.

Leva tua vida como estrada, horizonte entre céus e terra.

Leva tua vida no pulso, imagem indelével bordando a pele.

Leva tua vida em ti mesmo,
flor colhida antes do tempo,
que marca páginas
de livro sem fim.
O salto no escuro rompe a tênue sombra margem fronteira absurda;

como um barco alado que cruzasse o mar de colinas, o mistério atravessa o ar distraído

vento contra.

corre, mergulha, voa..

Dark Kiss.

PS: Essa cova é bela e funda!

Gotik Raal disse...

DarkViolet,

Sim ao silêncio, mas nem tanto às alucinações. Aqui, mesmo os demónios são já velhos conhecidos. Estes são os caminhos da imensidão, do frio extremo, da ausência humana, mas existem neste nosso mundo. Longe...
"Percorridas as infinitas vastidões regressa-se sempre a um sítio..."
E aqui mais um sim!

Abraço,

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Lady Alexiel,

Obrigado!
E então sempre havia um lago e uma floresta... talvez por isso mesmo, por ser especial para ti, são essas as imagens que lançamos e que trespassam.

Um beijo, também

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Vertigo,

Obrigado também! e não morras já, que acho que ainda não esgotei esta série :)

Um beijo,

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Mariazinha,

Sobretudo se aceitarmos todos os significados desse silêncio. Mas é sempre um bem precioso, de introspecção, de reflexão, de pasmo perante o mundo.
Uma grande cabeça, o Senhor Shakespeare!

Obrigado, e um beijo

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Bat Trash,

Uma outra grande cabeça, então, o Senhor Bachelard!
"eu sonho o mundo; logo, o mundo existe tal como eu o sonho.”
Eu acredito nisto para além da poesia.
Mas levantam-se qustões, curiosas: existimos nos mundos que sonhamos? Se os sonhamos sem a nossa presença existiremos neles ainda assim? E se não existimos e os sonhamos, será que os sonhos se tomam, depois, de vida própria...?

Dark Kiss,

Gotik Raal

bat_thrash disse...

Eu acredito nisso...:)
Há coisas que não conseguem ser materializadas apenas em palavras.

Gotik Raal disse...

"Eu acredito nisso...:)
Há coisas que não conseguem ser materializadas apenas em palavras."


Ah... mas as palavras são ainda assim fraco reflexo do espírito onde as coisas nascem verdadeiramente. Onde se fazem os mundos!

bat_thrash disse...

Sendo um pouco canalha...LOL:

tantas palavras se perdem
no sorvedouro das horas...
pudesse eu guardá-las
pássaros recém nascidos
em um ninho quente.

que sejam os poemas
o ninho dos significantes;
lugar onde se protegem