sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Buraco Negro

A grande Catedral fora terminada há mil anos. Resistia ainda, conspurcada no exterior por um emaranhado de luzeiros e fitas coloridas e pelos enormes paineis que anunciavam a comida fácil (de fazer, comer e vomitar). No seu interior, no lugar dos antigos fiéis acotovelava-se o povo ao longo das bancas do mercado assente num exército de ratazanas e couves podres.

O altar (com o seu anjo há muito vendado) ainda lá estava, e num dia de sorte era possível vencer as filas que se empurravam pela nave e alcançá-lo para obter o acesso aos juízes e aos negócios menores do estado que dividiam a antiga zona do coro. Tudo o resto eram ministérios envoltos em vidralhada negra e de mais escuros propósitos.

As novas chegaram já tarde na noite e o pior acontecera; o Usurpador, que dividira a meio a colónia anos antes, estava de regresso. Quebrara-se assim o último fio de razão. 

Foi como se mil rastilhos de pólvora se acendessem. Todos correram para as ruas e praças e a Catedral, pela primeira vez em décadas (desde a última Grande Desinfestação) ficou vazia. O silêncio sepulcral espreitou receoso por entre as colunas e, majestosamente, reclamou aos poucos o espaço antigo: vinha para ficar.

Sabia-se, pelos olhares selváticos contidos a custo nos anos que antecederam a entronização, que as suas celebrações trariam muita morte. Era de facto um apocalipse anunciado, tal como se contava nos antigos escritos.

Pela madrugada os gritos tornaram-se esparsos e cada vez mais inumanos; homens, mulheres e crianças tombavam, simplesmente; qualquer espaço era bom para esmagar um crânio ou decepar um pé. A morte vinha implacável, independente das causas; a morte era verdade - essa palavra estranha que deixara de ser ensinada nas escolas. 

Os cães correram para Norte velozes pelas estradas e todos os bichos os seguiram; contava-se à boca fechada que ainda existiam florestas e era chegada a hora de as descobrir.

Pelas três da tarde os céus cobriram-se de chumbo; racharam-se as paredes e delas saíram cobras que se julgavam extintas. Os chãos abriram-se e todos os corpos foram sugados de forma lenta e impiedosa, deixando atrás de si um rasto de unhas cravadas no alcatrão. Depois foi cair num negro sem fim, sem vento, sem som. 

Para alguns, sem que o tempo ou movimento pudessem ser medidos, sobreveio a certeza de si mesmos; foi uma humidade, uma espécie de abraço que lhes devolveu braços e pernas, e juntos rastejaram na direcção possível: estariam vivos, afinal?


Primeiro foi um cheiro inebriante de terra; depois uma luz ténue e um súbito raio de sol que iluminou todo o poço, as paredes cobertas de larvas humanas, de olhos fora das órbitas. 

Não reconheceram os seus corpos, antes débeis e que, agora, num arfar de músculos bem treinados os alçavam para o espaço aberto. Reconheceram sim aquele tempo distante, em que jamais haviam vivido.

 Um espaço imenso e vazio que reflectia o céu azul e, lá longe, a Catedral em construção.

domingo, 10 de setembro de 2023

Órbita

Dormira no chão de pedra da velha igreja. No alto, a noite estrelada enchia o espaço aberto séculos atrás por um incêndio.

Durante o sono as roupas haviam-se coberto de musgo, e ervas altas cresciam agora em seu redor; ao lado, as botas suportavam estoicamente um abraço de heras. 

Do seu sopro nascera um riacho. Levantou-se e seguiu-o, sacudindo dos ombros o resto daqueles anos numa nuvem de cinzas drapeadas. Procurou o lugar mais vasto das planícies, onde pudesse soltar desenfreadamente a vista na distância, naquele azul egípcio e transparente que se abria agora no horizonte.

Ali estava bem. No seu êxtase temeu adormecer de novo. 

Num movimento de compasso ergueu lentamente o arco enquanto a outra mão, de uma só vez, colheu sete flechas longas. Iria lançá-las todas de uma vez. Decerto chegariam mais longe do que a vista alcança, voando sobre as estepes, cruzando depois os oceanos, e evitariam habilmente os cumes das montanhas.

Ficou a vê-las partir, cumprindo-se tudo o que previra. Por longos momentos esticou a vista mais do que o havia feito o arco. Finalmente, apenas podia adivinhar. Tinha a certeza de que nada iria travar as sete flechas de aveleira. Onde acabaria o mundo?

Desceu sobre ele um manto cálido de silêncio. 

Não saberia medir o tempo que passou; apenas ouviu um uivo ínfimo e distante atrás de si e logo sete silvos rugiram, gigantes. Teve apenas o tempo de descer os olhos ao chão e de neles guardar uma última memória: um fio de sangue quente tingindo de morto escarlate as sete cabeças de flecha.

*

fotografias: Mikhail Nilov, Lars Mai, Chrys Stam, Nayrod Reyes

sábado, 9 de setembro de 2023

O Arco

 


Com a espada cortou-lhe a cabeça numa elegância de seda.

Observou-a, ainda sobre os ombros, deslizando devagar no declive do seu antigo corpo.
Caiu sem estrondo na terra, mas com um baque curto e sujo de fruta podre; e era-o, de facto.
A cabeça rolou livre e lentamente, cumprindo um pouco menos de um cúbito. Depois deslizou na erva húmida criando momento enquanto se aproximava - agora sem os braços abertos e suplicantes de há pouco - do precipício. Coberta a distância precipitou-se sobre o rio; e pela primeira vez criou algo verdadeiramente belo, na forma daquele arco que desenhou até às águas geladas.

O resto do corpo, joelhos flectidos, girou nas rótulas e tombou sobre a esquerda em direcção à noite.

*