O sangue apoderou-se das tuas órbitas. Lentamente ergueste o braço para apontar aquele que escorria dos meus olhos e, na verdade, era desconhecida a temperatura das minhas lágrimas.
Os sinos tocaram sem horas, chocando uns contra os outros; depois, quando o metal se transformou em pedra, o seu toque fez tremer toda a terra.
Os cães, pelo sobre a pele e sobre os ossos, abandonaram as fossas e os covis. Vagueando sem propósito cravaram os seus dentes, um após o outro num tempo de rigor demente e com uma profundidade enraivecida. Os pássaros gritavam nos céus e as gralhas desceram sobre os que na praça olhavam o alto, a todos furando os olhos, como relíquias.
As árvores secaram e os galhos quebraram-se, enegrecidos todos os ossos partidos. Forquilhas e dentes tortos.
A água inquinou e todo o pão criou bolor, azul da côr do veneno.
Depois vieram as chamas, e incendiaram todas as lembranças e pensamentos do meu crânio e, nas lojas, todos os perfumes arderam.
O espírito do rato era no homem, e neste habitava o vazio. Em tudo havia movimento mas a vida estava, para sempre, ausente.
Tinham-se desatado os nós. Todos os sentidos eram perdidos, e mesmo a idéia de que um dia houvera a ordem nunca, agora, existira.
Depois acordámos, lado a lado, as mãos dadas e olhamo-nos em mudo espanto; mas neste era ainda maior a tristeza do que o silêncio.
E tínhamos espadas cravadas no coração.
13 comentários:
Gosto imenso da forma como deixas sempre tão óbvio o IMPOLUTO, para lá do lodo, do sangue e do veneno, dos cães magros e dos ratos.
Em todos os teus textos encontro o canto límpido onde os horrores não soam, porque não lhe tocam.
Dark kiss.
Olhar para toda a morte, para toda a decadência, para toda a corrupção e para toda a desordem com olhos de pureza, com olhos que, no lugar de se tornarem negros, brilham ainda mais a limpidez, é ser um guardião da humanidade, um guardião de almas.
Morgana,
Agradeço-Vos essa leitura, Senhora. E, claro (com um sorriso) o pudor e o rubor embargam-me mais palavras!
(Gotik Raal, despede-se com pronunciada Vénia).
HornedWolf,
E no entanto é já tarefa imensa - o sermos capazes de proteger a nossa própria alma. Requer uma guarda da honra, de sol a sol.
Abraço!
Gotik
Vai soar contraditório, mas quanto mais cruéis, sangrentas ou negras as tuas palavras, mais se vislumbra a beleza e pureza do teu sentir... mas isso já foi aqui muito bem dito pelo Lobo e pela Fada...
E por isso, embora te possa parecer estranho, quase sempre que te leio, ouço e vejo... Sigür Rós :)
Kisss...
Não sou de subscrever comentários, mas hoje subscrevo o da Morgana, sem mais.
Beijos.
Parabens, o post esta esplendido! um grande beijo!
Saudades das tuas palavras...
Aqui sente-se o peso das almas antigas ...
Soul Kiss
Então?! Está tão quieta a Catedral... Onde os fantasmas, os espectros desassossegados?
Ora esta! Quem, senão tu, para lhes dar voz?
Fica um beijo mal poisado no canto da lage tão fria.
~~~~~~~~~~~~...
Peugadas ansiosas :)
Kisss...
Witch,
As contradições são talvez uma espécie de selo da condição humana, na sua forma mais espiritual. Talvez.
Em todo o caso vejo o sentido das tuas palavras e, sem achar que as mereça, ainda assim te as agradeço!
Um beijo,
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Bat Trash,
Sabes, partilho isso contigo. Não sinto necessidade de reescrever o que foi bem escrito. E nesse silêncio vivo por vezes num certo orgulho, uma pequena vaidade-pecado original.
Beijos, também.
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Marlene,
Obrigado pela tua visita à Katedraal. Quem sabe se até breve.
Um beijo para ti.
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Psiquê,
Obrigado. Tudo boas palavras, pela sua essência, claro.
Sentir. Pesar. Alma. Antiguidade. Fico contente que as tragas contigo.
Beijos.
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Morgana,
Está quieta, sim, a Catedral. Mas tu bem sabes que esse silêncio espectral faz parte do seu encanto. Permite que as heras cubram de novo - ou apenas um pouco mais - as paredes, que os bichos do bosque tragam nos cascos as sementes dos novos dias que hão-de crescer nas suas naves. Pousio e renovação.
Beijos..
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Witch,
E como vês os passos levam sempre a algum lado.
Mais um beijo.
Gotik Raal
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