quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Fata Morgana

Naquela manhã todos os bichos dormiram um pouco mais. 
Numa breve existência fóssil aguardavam que o calor do dia, de um sol morno e sereno como um lago, afastasse a fina camada de geada que a noite lhes emprestara, como um manto. Todos os sons eram ainda em silêncio e os sinos e os monges do mosteiro haviam falhado as Laudes.
No horizonte a perder de vista alongava-se a miragem do teu castelo, escura e densa; tomada de uma vibração imperceptível anunciava o teu regresso.
Do alto das minhas muralhas, envolto nas peles da última caçada e as pálpebras tão quietas como as pedras da torre, avistei-te, por fim, a duas léguas.
Trazias a tua floresta, um círculo mágico de raizes altas e ramagens em abraços de cobras - e a floresta caminhava contigo, deslizando sobre as neblinas matinais.
O teu caminho era tortuoso, ainda que a erva se estendesse fresca à tua frente. Cresciam-te rochas aos pés e os regadios transbordavam de exaltação. Estendias os braços e os corvos nasciam-te das mãos. Viravas a cabeça e soltavam-se tornados dos teus cabelos. Fúria imensa.

As duas léguas desdobravam-se, intermináveis, e eu sabia que naquele campo não havia batalha que pudesse vencer ou armaduras para ferir de morte. Todas as minhas lanças se renderiam inúteis.
Por fim, tomada do cansaço alcançaste o passadiço. Acenei-te do alto e os teus lábios esboçaram o sorriso, mas os olhos marejados de penas negras não me puderam então ver. E em silêncio recolheste aos teus quartos.

E apenas nos vimos de novo à ceia, na Primavera seguinte.


(dedicado à Morgana La Folle)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A Passagem Interior

Onde antes todo eu era sol avançam hoje os fiordes, de novo para as águas. Um estranho calor desprende-se deste mundo puro, como a seda das tuas mãos.
As águas negras, imensas, de profundidades milenares, despedem-se dos oceanos e tomam por fim o rumo dos estreitos e das passagens, das grandes plataformas de gelo, entre a terra mãe e os cumes dos arquipélagos.
São os domínios das águias reais e douradas, dos ursos castanhos e dos grandes cetáceos - de todos os olhos negros, mágicos e inalcançáveis onde habita ainda o Deus dos primeiros dias. Um mundo entre os mundos. O maior de todos e o único.
O tempo, esse, entra na passagem interior como todas as criaturas, tomado do pasmo das alturas e do azul dos glaciares. Chega com os homens mas vive um pouco menos do que estes. A vida, enquanto coisa nossa, nada mais é do que um suspiro, afinal, um leve agitar das brumas de onde emergem os navios.
E todos os navios são fantasmas. Todas as brumas. Todas estrelas sobre o Árctico.
Não sei onde me encontrar, sem me sentir perdido.
Mas daqui, do fundo e do alto, percebo o âmago destas coisas mais do que a mim mesmo.
Este é o meu mundo.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

O Bosque

No centro do bosque, esquecido em cima da sela, as árvores dançavam à sua volta. Tudo era mais veloz do que o tempo preciso para nomear as coisas. Imóvel, os braços pendendo e há muito por si esquecidos, ondulavam na brisa verde musgo.
O cavalo arremessava as crinas com movimentos erráticos do pescoço tentando afastar, também ele, aquele sentimento confuso de ter perdido os nomes, esquecido os caminhos e o sabor das plantas.
Era um mar escuro, imenso, de criaturas estranhas sem a aparência das formas, e até onde a vista alcançava nada havia, de outrora conhecido, que perdurasse.
Todas as canções se esfumavam no vento simples que silvava por entre as fendas da viseira do seu elmo. Não era Bóreas ou Zéfiro, Sirocco ou Levante. Era apenas um redemoinho de todas as coisas soltas.
Os laços haviam-se quebrado e aquilo que antes tão ciosamente guardara no cofre férreo do coração escorria agora, solto, entre as pedras.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Sarraceniaceae

Na noite, as trevas distinguem-se pela densidade. Do escuro ordinário estas se distinguem.
É um negro que envolve, como o abraço das plantas carnívoras, cheio de silêncios, em que os gritos morrem na boca. Gritos como a fome, como a dor. Gritos como o amor, essa criatura de sanguessugas.
Na noite as trevas aguardam, apenas.
E ao contrário dos grandes carnívoros das estepes, o seu fervor arde sob o manto nocturno, enlouquecido, na imobilidade. Todos os espíritos se acotovelam, estendendo as mão translúcidas, esses ogres do desejo. É um querer funéreo, de gargantas secas; de terras exauridas, sem pousio.
E todas as vítimas então se precipitam; e é seu, e é esse, o desejo da morte. Com os olhos ao alto, e à distância de um único passo, mergulham por fim nos precipícios da alma. São as crateras abertas, na ausência, na tristeza de si.

Depois, acorda-se para descobrir que a manhã nunca chegou a nascer e que as trevas de ontem são os poros da pele de hoje, e que subitamente o tempo é um contínuo transversal, um arco-de-chuva negro; um colosso helénico, feito do frio do bronze, as imensas pernas abertas unindo os portos inseguros e as estrelas.