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A mesa era comprida, e de tal modo longa que ao fim das dez taças os meus olhos ficavam-se na metade de cá. Estendiam-se aos lugares das aias, se tanto - e daqueles cujo pescoço já não estava ao alcançe, nem dos caprichos de ódio da Rainha, nem das fúrias sanguinárias de Gotik Raal.
A mesa, sob um escuro e sujo manto de damasco, enegrecido do asco, sulfuroso, empurrava os limites do velho salão; daquelas paredes sujas das fogueiras, das chamas que não se extinguiam desde os tempos do velho Rei - Pai dos Avós do meu próprio Pai - que aportara à ilha faminto, descendo de uma Nau esculpida nas árvores da Floresta de onde, dois anos antes deste dia, se haviam cortado os tampos desta mesa.
As discussões do presente, envenenadas, continuavam intermináveis.
À cabeceira, no outro extremo a trinta jardas, Bloody Mary bocejava. Com o osso e a gordura de um faisão, escrevinhou umas coisas numa velha gravura (representando uma forca e o seu pêndulo) e, com um trejeito ímpar da faca de trinchar - isto me foi contado mais tarde - fez-nos chegar às mãos os seus singelos pensamentos. Assim se lia:
"Ah, este pasmar em dia de jograis. Quão repugnante é este alarido, e o ter de rir com hora certa. Ter de verter lágrimas pelas lágrimas. E fingir o espanto da surpresa, e contudo anunciada com trombetas. E, o que é pior que tudo, o ar solene. Esmago as minhas pernas sobre o peso deste trono e enterro os dentes nas palmas das minhas mãos. Quantas vivem em mim! Quantas conversas não teria no silêncio mais profundo, se tudo se aquietasse. Tragam-me a espada e farei rolar cabeças. Nem que, apenas, pelo alívio de uma e única convulsão genuína."
Leu-o primeiro a Rainha.
Depois, sem o mais leve bater de olhos, depositou a velha gravura no meu prato entre os ossos já roídos.
O sangue correu-me célere nas veias: dos caprichos, do pasmo, dos ódios e do enfado.
Ainda assim, apesar de todos os vapores e sempre vítima do demónio lúcido da minha mente, avaliei as circunstâncias: três Cavaleiros, sete Ministros, quatro senhoras das noites de Deboche, cinco Embaixadores. Os Pajens presos das sombras bruxuleantes das fogueiras, como que esculpidos na pedra das paredes, encarregar-se-iam de que o salão estivesse limpo e arejado às primeiras luzes da alvorada. Os tempos eram de Inverno e todas as novas eram reféns da neve que nas manhãs cobria os caminhos. O meu sono estava assegurado. Tudo era certo.
Com um gesto menos ágil do que mesmo para mim próprio admitiria, desembainhei a espada e lancei-a, silvando sobre a mesa, sobre o sujo manto de damasco. Cortou os ares, cegou todas as conversas, e enterrou-se no outro extremo até à altura dos joelhos.
De um único salto, Bloody Mary tomou-se da espada pelas costas e sobre os seus longos cabelos apodrecidos, e decepou numa volta todos aqueles que tinha à distância de um cálice. Não houve pânico. Apenas o tempo suspenso, entre aqueles e os outros que se seguiram.
Depois fez-se o silêncio, e de novo a paz tomou conta do salão e durou, plena, até ao final da ceia.