segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

A Praga de Anémonas

Não há maior Terror do que as criaturas dos homens. Aqueles (seres daninhos) que escolheram viver nas margens de si mesmos; que a cada dia me impedem de alcançar os mares negros e profundos e que depois, como uma praga de anémonas, se erguem entre mim e as margens, que se fizeram para descansar.
O homem é a Praga Máxima. É a transformação dos números místicos na grosseira aritmética das hordes - dos que vomitam o caldo á visão de um campo de batalha. É o maior pecado. Aqueles que escolheram tolher o uso da alma e da inteligência do corpo, na posse de todos os sentidos embutidos, para aniquilar o que de bom ainda pudesse resistir - é por isso mesmo, e hoje, o meu adeus ao mundo dos homens.
Hoje é o dia em que cuspi no mundo, um cuspo de asco absoluto.

Serei doravante apenas um filho do Deus Maior; um de entre aqueles que, no amarfanhar extremo do sangue (e das veias, e do coração) se fingiram mortos no campo de batalha. Mas apenas pelo desejo de sobreviver para morrer antes no combate seguinte.
É uma diferença abismal: ser um guerreiro no terreiro da derrota incontornável, ou um eunuco nos vastos campos da vitória da vergonha.
E ainda assim toda a vergonha é a minha, de um dia ter sido homem.

Este é o mundo do meu corpo vivo, mas nem por isso acreditarei que existe.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Bloody Mary

A mesa era comprida, e de tal modo longa que ao fim das dez taças os meus olhos ficavam-se na metade de cá. Estendiam-se aos lugares das aias, se tanto - e daqueles cujo pescoço já não estava ao alcançe, nem dos caprichos de ódio da Rainha, nem das fúrias sanguinárias de Gotik Raal.
A mesa, sob um escuro e sujo manto de damasco, enegrecido do asco, sulfuroso, empurrava os limites do velho salão; daquelas paredes sujas das fogueiras, das chamas que não se extinguiam desde os tempos do velho Rei - Pai dos Avós do meu próprio Pai - que aportara à ilha faminto, descendo de uma Nau esculpida nas árvores da Floresta de onde, dois anos antes deste dia, se haviam cortado os tampos desta mesa.
As discussões do presente, envenenadas, continuavam intermináveis.
À cabeceira, no outro extremo a trinta jardas, Bloody Mary bocejava. Com o osso e a gordura de um faisão, escrevinhou umas coisas numa velha gravura (representando uma forca e o seu pêndulo) e, com um trejeito ímpar da faca de trinchar - isto me foi contado mais tarde - fez-nos chegar às mãos os seus singelos pensamentos. Assim se lia:

"Ah, este pasmar em dia de jograis. Quão repugnante é este alarido, e o ter de rir com hora certa. Ter de verter lágrimas pelas lágrimas. E fingir o espanto da surpresa, e contudo anunciada com trombetas. E, o que é pior que tudo, o ar solene. Esmago as minhas pernas sobre o peso deste trono e enterro os dentes nas palmas das minhas mãos. Quantas vivem em mim! Quantas conversas não teria no silêncio mais profundo, se tudo se aquietasse. Tragam-me a espada e farei rolar cabeças. Nem que, apenas, pelo alívio de uma e única convulsão genuína."

Leu-o primeiro a Rainha.
Depois, sem o mais leve bater de olhos, depositou a velha gravura no meu prato entre os ossos já roídos.
O sangue correu-me célere nas veias: dos caprichos, do pasmo, dos ódios e do enfado.
Ainda assim, apesar de todos os vapores e sempre vítima do demónio lúcido da minha mente, avaliei as circunstâncias: três Cavaleiros, sete Ministros, quatro senhoras das noites de Deboche, cinco Embaixadores. Os Pajens presos das sombras bruxuleantes das fogueiras, como que esculpidos na pedra das paredes, encarregar-se-iam de que o salão estivesse limpo e arejado às primeiras luzes da alvorada. Os tempos eram de Inverno e todas as novas eram reféns da neve que nas manhãs cobria os caminhos. O meu sono estava assegurado. Tudo era certo.

Com um gesto menos ágil do que mesmo para mim próprio admitiria, desembainhei a espada e lancei-a, silvando sobre a mesa, sobre o sujo manto de damasco. Cortou os ares, cegou todas as conversas, e enterrou-se no outro extremo até à altura dos joelhos.

De um único salto, Bloody Mary tomou-se da espada pelas costas e sobre os seus longos cabelos apodrecidos, e decepou numa volta todos aqueles que tinha à distância de um cálice. Não houve pânico. Apenas o tempo suspenso, entre aqueles e os outros que se seguiram.
Depois fez-se o silêncio, e de novo a paz tomou conta do salão e durou, plena, até ao final da ceia.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Cristo no Deserto

Naquele dia, a manhã não afastou as trevas como era seu costume.
Ao invés, as primeiras luzes trouxeram consigo um véu metálico, de um brilho opaco, que reflectia a têmpera da grossa armadura que envolvia toda a Terra desde as matinas.
Depois foi um trovejar rouco e enraivecido vindo das entranhas do chão, e que anunciava a chegada das águas, do dilúvio.
Da torre mais alta da Catedral, cujas janelas estreitas deixam abarcar os quatro cantos do mundo, por todas elas se anunciava aquele cerco dos mares que, num ápice, devoraram tudo o que era seco.

Coisa de maravilha. As águas negras cobriram as represas e diques, as árvores, os caminhos e os castelos, encheram todos os poços e fossas, e não mais houve cores no céu ou na terra, e não mais houve terra ou céu. Apenas aquele inferno de mercúrio, sem espuma.

A Catedral fez-se Nau e então, lentamente, soltou amarras daqueles verdes prados submersos e partiu, o ventre cheio do sombrio silêncio, as naves enfunadas pelos seus ventos de séculos. Sobre as ondas, a torre rasgava círculos na copa das núvens, e nestes estava toda, a única luz viva que se viu naqueles dias; e por estes desciam todas as águas do céu que libertavam os vapores de enxofre das águas da terra.

Por três montanhas passou sem aportar e cumpriram-se vinte dias.
A caça, hirta e lívida de morte flutuava à deriva, os cascos entrechocando-se como mastros - e tudo o que tinha chifres era morto.
Passou um sino sobre as águas com dois camponeses adormecidos, da sua corda pendendo, enforcado, o monge das horas - e tudo era chumbo.
Por duas colinas passou sem se deter e cumpriram-se trinta dias.

Depois foram quarenta e todo o movimento cessou.
Desceram as águas recolhendo submissas aos ribeiros, aos regadios, gotejando das macieiras, enchendo as ervas de brilhos.
A Catedral adormeceu num imenso campo dourado de searas, devolvendo as sombras às entranhas labirínticas dos seus túneis, e as heras puderam então de novo crescer pelas paredes.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Túmulos. IV.

Partimos para Leste, pelas infindáveis curvas brancas do rio; mas cortar a direito, por uma vez na vida, era impossível. Em vez disso o caminho afundou-se-nos nas veias, pleno de paciências, de silêncios, da certeza dos tamanhos relativos - do mundo e dos nossos.
Por fim o rio esvaiu-se nas planícies agrestes de vegetação rasteira e então virámos a Norte e a Leste. O percurso era feito de todos os trilhos pequenos das aldeias, do tempo em que éramos poucos sobre a terra e, de facto, naquele momento fomos únicos. Foi toda nossa a pena, a dor e os céus das nuvens mais altas do que a vista alcança.
Passaram duas luas, antes que finalmente tomássemos o caminho do Sul e do Leste - mas hoje, ao pertencer a estes muros de pedra que me abraçam, não me lembro de quantos dias tinham; apenas recordo aquele Ser branco no céu, duas noites a fio, das sombras de cinzas suaves e dum recorte perfeito suspenso dos confins, do negro.
E depois foram mais curvas, mais rio, e quatro cumes de morte - apenas conquistados por aqueles que já foram deste mundo, e regressaram para de novo partir. Subir para morrer, e descer para de novo negar a vida.
Vieram os campos, de pós sujos, dos minérios; sítios que a Criação não logrou alcançar - tudo cinzas, ferros magnéticos. E os rios transversais - mas desta vez o caminho era direito, e todas as curvas se esbatiam nos cantos dos olhos.

Por fim alcançámos os pântanos cobertos de um branco de gelo invernal. Mas não menos pântanos.
Naquele mundo esquecido os nossos sons morriam perto; a minha corrida metálica, da armadura descompassada pelas quinhentas léguas a fio, e o arfar dos cães das línguas enormes pendendo já sem saliva, as unhas rasgando as últimas placas de neve e sendo rasgadas por estas. Também eles davam sinais do fim, da inquietação do mundo imenso para lá daquele tempo, que acabaria nessa noite.

Chegaram as trevas. Sentei-me no meio da clareira das árvores nuas, o elmo entre os joelhos. Os cães partiram e regressaram com a lenha húmida nos dentes, e com esta marcaram um círculo à nossa volta. No centro, eu era a torre caída e eles, companheiros de uma vida, formaram as ruínas de uma muralha em meu redor.

E assim permanecemos, sem som, sem olhar, indo-se os sentidos sem regresso. Podia ouvir os lobos da noite, mas os cães inquietavam-se apenas com os silvos dos meus demónios. E por fim acendeu-se um tronco, como um diabo. E logo dois. E todo o círculo de fogo se ergueu na noite.

Naquele instante, dos nossos corpos fez-se a pedra e fez-se o gelo.
E ali permanece, ainda hoje, a escultura oca. Dos dias em que fomos o mundo todo.