sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Dogma




Na solidez da rocha assentam as mais altas construções,
e nem todas as palavras juntas dizem da mais humilde revelação;
E lá longe, no lugar onde a terra abrupta acaba, é apenas o princípio do céu.

Pois que a imensidão de Ciência é só o corpo de um lago nocturno,
que termina na superfície das águas, acima das quais nada existe.


No mais ínfimo grão de areia se presta culto ao maior dos templos,
e o sol mais abrasador é apenas um brilho fugaz na janela do meu catre;
E no entendimento profundo do imutável, se encontra a chave das infinitas possibilidades.

Pois que no incompreensível reside o inexplicável, 
e na frase mais curta, o indizível.


quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Annapurna


Catedral dos meus sentidos,
deste espaço imenso à minha volta;
onde a terra corre agora, e sempre solta
entre as fendas dos meus ossos já partidos.

Quisera eu jamais te magoar,
mas foi chegada a hora de subir;
galgar os ventos, as escarpas, decidir
que este sono do meu sangue, há que arrancar.

Seguir-me-ás depois, por fim, um dia,
quando as nuvens do meu céu te alcançarem;
e as tuas negras veias reclamarem
do teu ser, da alma, a vasta geografia.


sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Nocturno

Com o fresco da manhã a dor aquietou-se.
As feridas sofridas na noite tomam-se de uma atenção ímpar; os tímpanos perfurados, os dentes rotos. Os ossos escanados e as unhas que crescem tortas, furando as massas do crânio. Ainda que, e apesar dos suores dos corpos - pois que a noite é inimiga de todas as anatomias.
No entanto ali era só eu, naquela noite em que sofri os horrores dos meus sentidos. Entregue a mim próprio não encontrei melhor carrasco.
Infligi-me as maiores torturas, as mais sangrentas imagens, os sons mais lancinantes emergindo das minhas entranhas abafadas no resguardo do linho dos lençóis e do peso das mantas.
Nessa noite, todos os sonos soltos corriam, vorazes, as alas do castelo. E contudo deixaram o arco da minha câmara envolto nas sombras do silêncio. A vigília nocturna é coisa da maior solidão.
E a solidão é isso. A ausência da alma que deixa entregue ao corpo frágil a consciência. Aquele instante singular em que nos vemos de costas.
Ausente, e num raro vislumbre do homem, filho do homem, apenas a dor excruciante impediu a ruína do meu corpo.
Mas com o fresco da manhã a dor aquietou-se, e por fim adormeci.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

"En ma Fin gît mon Commencement"

Descansa. O corte no teu peito não é assim tão fundo. O coração está ainda à guarda das costelas.
A morte passou ao largo, desta vez; e vai já longe, indiferente ao teu rasto de sangue.
Não te deixes dominar pelo medo. Aquilo que tu és, realmente, e embora ignorante, é intocável.
Devias levantar tenda e seguir viagem, neste instante, ainda que o teu corpo não te possa seguir. Mas no momento em que partires serás apenas o teu íntimo - e desse modo saberás quão grande és, agora que livre da carne.
Não te distraias, não podes. Não deixes, dessa forma, que todas as manhãs do mundo te interrompam a noite, que é só tua.
O caminho que escolheres será O caminho, ainda que apenas o teu. Nada se pode opor a quem tem o sangue frio de ver no seu reflexo o seu maior assombro.
Agora que subiste ao púlpito da tua consciência, descobriste em toda a assembleia não mais do que a face contraída dos teus anseios.
Deste a volta ao mundo e no fim disseste - enquanto, num gesto de incomensurável graciosidade, descobrias à lâmina o teu pescoço de infinita elegância: "No meu fim está o meu princípio."



(Gotik Raal sobre sons de Michael Nyman, Hilary Summers, "If")

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Pater

De todos os luzeiros do céu, sei lêr os que falam do teu nome.

E quão curto é o tempo entre o aqui e o sempre, pois se o sempre é também o aqui e o agora.

sábado, 15 de novembro de 2008

O Silvo da Serpente

Veloz, como a sombra nos relógios de sol à passagem dos cometas, carregando em si mesmo o prenúncio e o desígnio da morte.
O tempo ampliado na súbita e aguda consciência do silvo, do ganir de cães.
O som grave e cheio, de um sangue azul implacável de avalanches.
E a perfeita circunferência traçada na ponta da espada, secante à jugular.

O pescoço a romper, todas as cordas da lira, uma por uma estalando ao ar seco de um fim de tarde. O final do estio.
E o resto de um fôlego, no último e milionésimo adeus ao calafrio do aço.

E esse instante gravado a ferro e fogo naquele olhar fixo, incrédulo, da cabeça a rolar por entre as ervas.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Túmulos. III.

A barca imobilizou-se às portas do grande deserto branco. "Sois chegado ao vosso destino."
Do véu de neblina, que espalhava o silêncio das águas geladas àquelas primeiras horas, emergiu o dorso de uma baleia azul e o barqueiro disse: "Eis o vosso guia."
Depois, juntos varremos as ondas sem rasto ou espuma, os vertiginosos e oceânicos abismos, as rochas negras de azul e, por fim, o labirinto de fiordes que se abriu ao vasto manto polar. Sobre o gelo, dois ursos brancos, e a baleia disse: "Eis a vossa guarda."
E então juntos caminhámos para Norte, seguindo o trilho aberto pelas nuvens, a elite dos exércitos boreais no cume do mundo, para lá do alcance da mais poderosa das bestas. 
"Este é o vosso rei", disseram os ursos às donzelas e eu segui-as; três raposas do Árctico num rasto de sangue de leões marinhos, por três dias e três noites em que o Sol nunca se pôs.

E quando de novo olhei o céu já não o vi. Nem céu nem alto, ou algo ao seu redor. Nem gelo no horizonte ou sob os pés. Nem pés nem corpo ou espada no meu punho. Em tudo, apenas, o mesmo branco neve longe ou perto, nem sombra de miragem ou deserto, nem deste que aqui estou, envolto neste manto sem o ver.

Apenas esta consciência: de não ser mais que ser eu, que não se apaga.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Daedalus

Nós os dois,
somos a Lua.
Tu
és a face oculta.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Túmulos. II.

Escuto a ressonância diáfana dos passos no embarcadouro, 
o macio entrechocar de vozes que se abraçam e depois, juntas, mergulham nas águas verdes. 
Descem pela trança de algas, essa espiral que, das pedras maceradas pelas rodas das carroças, conduz às grades do meu elmo. 
Amortalhado neste casco aberto, meus são todos os gestos do silêncio. As guelras, os labirintos de água, a eternidade deste breve abismo suspensa do voo dos falcões. 

No fundo do lago,
descanso.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Números



I, II, III, V,
VII números
primos, que nós éramos.
E depois rimo-nos
da singularidade.

domingo, 9 de novembro de 2008

Nuvens



Mais do que o tempo são as nuvens neste céu,
esses gigantes
das vastas planícies onde os pássaros se deitam.
Nuvens dos meus olhos, que se elevam e deleitam
nos feitos importantes,
dos dias em que o reino, mais além, aconteceu.

Por esse mundo imenso, à vela
velha nau, que é deste azul à beira mar,
esquece a rota sem destino que é a morte.
Sempre mais, de outras viagens, de outra sorte!
Desta terra sobre o mar - que é navegar,
se lembrarão depois os feitos, sobre a tela.

E tudo quanto sou a ti o devo, afinal.
A ti, que me tiveste e me fizeste, deste zelo.
E se, alguma vez, me enfureceste
foi nos dias em que cego te esqueceste
do quanto já foste, sempre e tanto, e tão mais belo.
Portugal.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Peste Negra

O sangue agrilhoado na cabeça, nos ouvidos. Os olhos desvairados procurando, por entre as traves do tecto, um fenda qualquer que liberte a alma. E o sabor metálico das pedradas nas têmporas, que escavam sem descanso as palhas velhas da cama. E o corpo a queimar de vulcões e lava de pús.
A porta abre-se num rilhar de dentes e o médico entra, espectral, numa procissão de passos curtos, mãos insensíveis nas mangas, envoltas naquela pele de cetim negro que lhe cobre todo o corpo reflectindo, imaculada, a imundície dos aposentos.

Há algum tempo, já, que os ratos partiram. Naquele dia em que a Lua, pousada na linha dos telhados e das muralhas, foi maior do que o Sol. Naquela noite em que as cidades transbordaram e os cães danados saíram das sarjetas, num galopar infernal de unhas estilhaçadas nas pedras das ruas estreitas.
Exibindo como troféus as pulgas e as carraças aprisionadas nos excrementos secos que cobriam o seu pêlo branco, tomaram todas as casas, todos os vãos de escadas, todas as fossas. E as línguas bifurcadas e pendentes de um rosa pálido-morte, marcaram e para si reclamaram de todos os vivos, dois em cada três.

E o médico, olhos agudos no crânio fóssil das pinturas de Mestre Bosch, desceu sobre o enfermo como uma cegonha de água. E o terror. À sua visão o sangue correu mais célere, gotejando em cada poro daquela pele de bubos, outrora lisa. E como uma cegonha se ergueu, no único juízo daqueles dias de condenados, e sem proferir palavra, disse:

"Larga o corpo. Vai-te."

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

A Légua

Silhueta, mais negra que a noite escura, imóvel sob a chuva que teima em lavar a terra dos terrores que se fazem aos caminhos só depois da hora de Completas. Imóvel, no seu cavalo da côr do breu das luas novas, a espada pendendo na impotência do fluir dos demónios. Cabeça baixa, ambos, cavalo e cavaleiro. Trespassado dos risos histéricos, dos lamentos e das agonias, numa transparência que não sem dôr, numa dôr inatingível senão pelos caminhos da verdade, das selvas amazónicas do Sêr, das florestas virgens da Alma, essa viagem.
Naquele instante, dos olhos esfumados das memórias e da articulada textura da chuva caindo sobre a sela, a existência era a maior das penas. Instantes como aquele, em que o Universo se cristaliza num acontecimento singular de proporções incomensuráveis, acontecem apenas uma vez - pois que não duas ou três - na vida de um homem. Cristo teve os seus, mas Ele Todo era esse momento, essa transcendência em que o Homem indefeso, apenas sendo, não conhece fronteira; em que a consciência da total insuficiência é o maior e mais sólido dos templos.
Mas isso não o sabia ele, na altura. Soubera-o antes e decerto o lembraria depois, se depois houvesse. Pois que a vida corria gota a gota, como a chuva. Mas sem que o adivinhasse, uma lágrima sua, vertida sobre a terra, ensanguentaria todos os oceanos e mares, todos os ribeiros e charcos, todas as Lágrimas.
E no entanto era aquele o caminho, que se estendia perante si, simples como um regadio.
Uma légua à sua frente, uma estalagem. Um pão duro e uma caneca da boa cerveja amarga, do lúpulo. A lareira, devolvendo aos olhos o seu brilho. Um calor.
Uma escada de grossas traves enegrecidas, uma porta e uma cama sem dossel.
Uma janela, vidros sujos dos matizes das cores dos prados. A sombra a dar lugar ao dia, descobrindo a estrada do seu manto Nocturno.
Um cheiro inebriante de alfazemas, como a Vida.